Metáfora

O dia começava com a ironia da mulher: -vê se não perdes o avião para estares em casa à hora do jantar. À chegada ao trabalho vinha o Chefe de Redação armado em engraçado: - outro pneu furado, Joaquim? Sim, chefe, hoje foi do outro lado, respondia entre dentes, já que aquele era à moda neoliberal do se não está bem, mude-se, a porta é a serventia da casa, há mais quem queira trabalhar e outras vulgaridades no género bem compatíveis com ele que era vulgar e preconceituoso. Depois, a tarefa que lhe cabia na revisão de textos finais, dos discursos de quem tinha obrigação de saber quando o porque se distinguia do por que ou se o a deveria levar agá nos casos em questão. Tudo coisas simples que gente com curso e doutoramento escrevia com erro, falava com erro e pensava sem lógica. Era a vida. Sem apoios nem empenhos, sem dinheiro para terminar o curso, acabara ali. Começou a corrigir os erros dos anúncios de três linhas no tempo em que isso implicava ver a prova de máquina, a prova corrigida e o jornal pronto. Uma canseira de mesmices, as mãos pretas da tinta, a pressa. A pressa. O stress. A sala parecia aguardar Dom Sebastião tanto era o fumo dos cigarros que toda a gente apagava nas chávenas do café. Umas alturas cheia como um ovo, outras um perfeito deserto quase silencioso. Ao ir pela primeira vez à composição viu as rotativas a cuspir jornais e revistas a uma cadência assustadora. Percebeu que qualquer erro se veria em milhares de lugares e lugarejos, de cidades pelo País fora. Sentiu-se fraco, as pernas a tremer, a folga juvenil definitivamente abalada. Uma gralha era uma arrelia e poderia gerar complicações absolutamente nefastas. Saramago sabia disso tanto que começou por aí “ O Cerco de Lisboa”. Penou a seguir com a informatização. Fazia cursos de informática e quando se achava capaz mudavam os programas, os conceitos, os processos. Mas acabou a saber como se faz e já não sujaria as mãos se continuasse na revisão de textos sem importância redatorial. Agora a coisa era mais fina. “Lava a nêspera antes de a comeres” só ofende em terra de magnórios que, a sul desta mistura, nem sequer é ironia. Afinal ele também ali estava para esclarecer o sentido das frases. Subiu na carreira e já escreve sobre eventos sociais e horóscopo. Tudo lindo e perfeito. Só é preciso saber se casaram mesmo que só isso trava um bela invenção. No mais, o importante é ser perfeito. Uma boa fotografia do sim recupera tudo, diz com tudo e lisonjeia os noivos. O horóscopo, só porque o tem por insípido, muda-o para melhor. Enriquece as previsões, atenua os agouros e deixa os românticos com aquele ar idiota a pensar cor de rosa. Ligou o alarme do relógio para estar a horas em casa. Para não perder o avião, pensou. A menos que o que manda ali lhe mude, à hora de sair, a intenção.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 10/03/2015
Reeditado em 10/03/2015
Código do texto: T5165006
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