Ebertha

Quando conheci Ebertha e sua mãe fui tomada por uma revolta sem tamanho, passei uma noite em claro porque não me conformava que seres humanos pudessem habitar um lugar tão horrível quanto aquele. Num português traduzido por outro haitiano, soube que aquela mulher não alimentava a criança todos os dias porque ela também não tinha comida. No início eu não sabia o sexo da criança, pois a mesma era tomada de uma apatia tremenda, e naquele lugar dominado por cupins, ratos e um entrelaçado de fios elétricos, era que não dava para perceber. Naquela noite rolei na cama, não conseguia dormir pois todo instante era sobressaltada com aquela cena, não admitia que a disparidade social fosse tão terrível, pensei como era irresponsável o Estado ao permitir a vinda dos haitianos para o Brasil sem a mínima estrutura. No intuito de ajuda-las contratei umas diárias com a mãe, somente para não dar o dinheiro do aluguel de forma gratuita. Pois logo no dia seguinte comprei alimentos, leite, frutas e verduras. Na terceira diária ela solicitou-me que ficasse com a criança para resolver uma coisas. Como tinha um compromisso com a minha tia, levei a pequena comigo, porém no retorno fui surpreendida com uma crise grave de refluxo, a menina estava com muita dificuldade de respirar, pedi forças a Deus e enquanto dirigia o carro debaixo de chuva, comecei a aspirar o nariz da criança com a boca, foi um tempo terrível até chegar onde a mãe estava. Quando entreguei a bebê a mesma ainda não respirava normalmente e numa tranquilidade sem tamanho a mãe me disse que estava tudo bem. Sem pensar muito disse que isso poderia estar bem no Haiti mas não aqui, liguei o pisca alerta do carro e com a mãe e um primo me dirigi imediatamente à unidade de saúde. Estacionei no espaço da ambulância e falei para a equipe da emergência aspirar a bebê que estava sufocada. Após os primeiros procedimentos ela foi conduzida de ambulância para a unidade infantil, foi somente pela madrugada que aquele passeio na casa da minha tia terminou, pois após as orientações do médico e a medicação em mãos cheguei em casa. A atitude que tomei não poderia ser diferente, afinal eu já havia percebido que essa mãe não saberia medicar a criança, dessa forma pedi que viesse ela e a menina morar comigo, e assim eu conseguiria medicá-la direitinho . Após atualizar as vacinas da criança, tirar todo o açúcar que a mãe dava (três colheres de sopa para 120 ml), aquela criança começou a desabrochar, ficou uma boneca como todos a chamam.

Depois de cinco meses a mãe saiu da minha casa, havia uma lacuna cultural e de costumes entre nós, mesmo assim me apeguei a criança e a mesma a mim.

Percebi que a mãe como qualquer ser humano sem caráter se deslumbra muito fácil, tem um culto enorme à aparência, o que justifica eu encontra - la no cortiço passando fome porém muito bem alinhada. Passou-se um ano e ela sempre me dizendo que ia me dar a guarda da pequena, falou até em adoção,só que como eu já havia percebido que ela faltava com a verdade, conscientemente não acreditei mas inconsciente alimentava essa esperança. Ela ensinou a criança me chamar de mãe, e deixou a menina por minha conta, foi a pouco tempo que tive que aceitar que essa pessoa independente da nacionalidade é uma dessas almas que rasteja no globo terrestre. Quando faltava só a documentação dela para formalização do processo da guarda, ela simplesmente inventou a história mais mirabolante: O pai da menina não concordava com isso, mesmo não tendo registrado a filha e morar no Haiti. Chorei por dois dias, chorei pela criança, chorei por acreditar que eu acreditei nessa história de guarda, chorei pela maldade, pela mentira, ou seja, chorei todas as minhas frustrações e decepções com a raça humana. Mesmo assim fui tocando a vida, deixando a bebê na creche, cuidando, alimentando, dando amor, zelando, ou seja, fui pelo sentimento já que não tenho nada legal que me dê algum garantia. E mesmo já tendo feito muito por tantos queria ajudar essa pequena criança. Mas o último fato que a mãe me apresentou, me deixou tonta de tanta incredulidade que me fizeram desistir de levar essa idéia adiante e com o coração partido resolvi entregar a criança, principalmente porque vem em minha mente o quanto o ser humano é capaz de ser perverso e ingrato. No momento estou me preparando para essa separação, meu coração em pedaços pós dezessete meses em que fui mãe em todos os sentidos da palavra. Para amenizar a minha dor, fico imaginando os filhos que são esperados por nove meses e com poucos instantes de vida morrem. Sei que a menina vai sofrer muito, mas não posso arriscar minha vida pelas atitudes da mãe, que antes me era confiável e hoje não mais. Como ela trabalha em um salão de beleza, fico imaginando quantas caraminholas as pessoas dizem, até porque nessa altura do campeonato ela nem lembra mais que a resgatei do abandono e da fome. A menina ficou tão linda que as pessoas a chamam de boneca, bem negra, esperta, falante, inteligente, deve ter umas quatro mil fotos espalhadas por ai. Somos grandes amigas, cúmplices, tenho cuidado dela com muito afinco, apesar de não ter tido filhos biológicos, criei muitos filhos seja de laços de sangue ou não, mas Ebertha é um capítulo à parte, cuidar dela foi uma dádiva, pena que vivemos num mundo cruel no qual precisamos ter o mínimo de garantia legal, um coração dilacerado pelo dor ainda é capaz de me dizer que realmente preciso deixá-la aos cuidados da mãe biológica. Ela foi e sempre será minha filha e eu serei a sua mamãezinha. Tivemos maravilhosos momentos e esses somente no fechamento da retina serão apagados! Te amarei para sempre filha!