666-INDEPENDÊNCIA OU MORTE-
A parada do Dia da Independência seguia com sucesso. No palanque armado na Praça da Matriz, as autoridades, após o discurso enfadonho do prefeito, assistiam o desfile e aplaudiam com pouco entusiasmo. O sol das dez horas de um dia sem nuvens era inclemente e o palanque era descoberto, razão das poucas palmas dos expoentes da cidade.
Mas a população, comprimida nos dois lados da rua, contidos por fitas amarelas amarradas em estacas, estava animada e ovacionava com palmas, assovios e gritos de entusiasmo.
O desfile era aberto pelos os garbosos atiradores do Tiro de Guerra, seguidos pelos alunos da escola estadual, pelas moças e meninas do colégio das freiras e terminava com os alunos dos três grupos escolares do município.
O sol faiscava nos fuzis aos ombros dos atiradores, cujas fardas verdes exibiam limpeza e vincos impecáveis. Marchavam ao som da ponderosa fanfarra e estridentes cornetas. Os moços e meninos do ginásio, em farda branca, sobressaiam pela cadência um tanto marota, pois a bateria soava como uma escola de samba. Eram igualmente esbeltos, até mesmo na rabeira, com os garotinhos miúdos, que se esforçavam para acompanhar o passo dos maiores.
As meninas do colégio das freiras tinham uma maneira graciosa de desfilar, bem treinadas que eram pela professora de ginástica, a exigente e atlética dona Miranda.
E os meninos e meninas dos grupos municipais recebiam os aplausos mais fortes, porque eram mais numerosos, reunidos num só grande grupo, e os familiares faziam a “torcida”, com gritos, assobios e aplausos,
Nesta parte do desfile, destacava-se o treinador dos alunos dos grupos escolares, Homero Cardona. Alto, de porte atlético, completamente careca, trajava camisa de ginástica, calça de fino linho e calçava tênis tamanho 44. Tudo branco.
Assobio nos lábios, ia do começo ao fim das filas de quatro alunos, dando ordens aos garotos maiores, da fanfarra, corrigindo o alinhamento dos batalhões seguintes, ao mesmo tempo em que agitava os braços para o povo, incitando os aplausos.
Era uma figura impressionante!
Pelo entusiasmo de Cardona e sua agitação, a parte final do desfile era sempre a mais animada, mesmo porque, depois que os meninos e meninas passavam, os cordões de isolamento eram desfeitos e a multidão ia atrás, numa alegria patriótica e apoteótica.
<><><>
Homero Cardona era funcionário publico federal, de boa situação social. Família bem constituída: a mulher Dona Norma era da alta sociedade local e diretora de associação de caridade; o casal de filhos, Diana e Astolfo, adolescentes, eram causa de orgulho dos pais.
Sua única relação com o ensino era a função de presidente da associação de pais e mestres das escolas municipais. Neste exercício, tomou para si o encargo de organizar os alunos para os desfiles que marcavam os grandes dias patrióticos, como Dia de Tiradentes, Primeiro de Maio, Dia da Independência e Dia da Proclamação da República.
Tornou-se um elemento indispensável na organização dos desfiles de tais datas. Por tantos anos já exercera tal liderança que sua figura era aguardada por todos. Podia-se dizer que se tornara folclórica.
Mas... (sempre em um "mas" em toda história) Cardona tinha um fraco. Chamava-se Zuleika e vivia na “pensão” de Michelona, uma cafetina gorda, loira e eficiente no seu mister. Tão eficiente que jamais permitiu a saída de Zuleika de sua casa, apesar da insistência de Homero em tirá-la do bordel.
— Imagine se vou deixar sair daqui a menina mais bonita da casa. Jamais! — dizia a dona do lugar. — Ele que venha aqui quando quiser, mas Zuleika não sai.
E Homero ia, sim, visitar a fogosa Zuleika quando queria. Não tinha dia nem hora marcadas e por muita sorte jamais flagrara a “sua” amante com outro homem.
Então, num inesquecível Dia da Independência, após o desfile, Homero foi diretamente visitar Zuleika. Chegou à casa de Michelona à hora do almoço.
— Venha, sente-se conosco, hoje tem seu prato predileto. — Convidou Zuleika.
Ele aceitou. À mesa, estava diante de si, uma grande travessa com suã, os pedaços da carne de porco com ossos, boiando em gordura. A farofa apimentada, o complemento ideal, estava ao lado.
Era, sim, sua comida predileta, e Homero se fartou. Comeu o que não devia, lambeu os dedos, raspou o prato.
Em seguida, lavou as mãos, bochechou a boca e foi para o quarto com Zuleika.
Não deu outra: uma congestão fatal matou Homero quando estava em cima da amante.
<><><>
Era cerca de duas horas quando a notícia se espalhou pela cidade. Dia feriado, grande parte da população estava na Praça da Matriz, fazendo hora para a matinê do Cine Odeon, ou tomando sorvete na Confeitaria Cabral ou simplesmente flanando pela praça.
— Mas, como, ainda de manhã ele estava na parada! Como foi?
— Não acredito! Mas ele ia na zona?
— Pois é! Em cima da puta, o maior peladão da zona!
O quarteirão da casa de Michelona ficou cheio de curiosos. Foi preciso a intervenção do delegado Rocha para a retirada do corpo, feita estrategicamente pelos fundos da casa, a fim de evitar tumulto maior.
Naquela época e na pequena cidade, os velórios eram realizados na casa do defunto. Mas a viúva, Dona Norma, ao voltar do desmaio que sofrera ao receber a notícia, recusara a fazer o velório do marido em casa.
— Vamos levar o corpo para o hospital. — Determinou o delegado. — Lá decidiremos o que fazer.
Consulta daqui, consulta dali, até o prefeito entrou no assunto e a diretora da Escola Municipal Comendador Taborda Gomes consentiu que o velório fosse feito salão nobre da escola.
— Assim, prestamos uma homenagem ao grande presidente da Associação de Pais e Mestres.
A morte dramática e desastrosa de Homero Cardona foi amenizada com aquela homenagem. Entretanto, Dona Norma nunca perdoou o marido. Não tanto pela infidelidade (da qual ela já sabia) mas, principalmente, pela repercussão do fato na sociedade local.
Antes do fim do ano, mudou-se para a capital, com Diana e Astolfo, e nunca mais voltou a pisar o chão daquela cidade.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 18 de maio de 2011
Conto # 666 da SÉRIE MILSTÓRIAS