UM DIA DE SEMANA

UM DIA DE SEMANA

5 da matina, descerram-se os olhos que fingiam dormir, tudo é treva qual o sono, qual o sonho, menos a luz digital do relógio, que ora aponta a hora de levantar, tatear até a maçaneta e ir em direção a luz que se acende num toque, mostrando a cara feia e amassada para um novo velho dia. A pasta de dente, não creme dental, escorre para a escova e acompanha o zumbi ao box, abrindo a água e espantando a madorra ainda instalada. Um novo artefato, desconexo do ambiente, um balde, recebe os primeiros jatos de água fria até seu amornamento, enquanto um jato morno, escorre pelo ralo, em nome da cidadania que vale e resolve pouco.

Finalmente água na cara, pasta no dente, sabonete, por enquanto, em todas as partes, despertam para um novo dia ainda noite, maldito horário de verão. O banho é rápido, o enxugar-se e trocar-se um pouco lento, não sem antes apreciar-se no espelho e atinar para a máxima do “como o tempo passa”. A cozinha o espera com a água

na chaleira. Acende o gás e aguarda o apito de início de jogo. Enquanto isso, abre a porta para pegar o jornal e ao mesmo tempo, recolher o delicado cocozinho da bichon frisé, que aproveita a oportunidade para festejar sua presença e pedir um agrado. O apito se anuncia, o aroma do café no coador, desperta definitivamente o ainda morto vivo. Abre o jornal e fluem as impressas e expressas desgraçadas verdades de todo o dia, meio requentadas pela tecnologia que a tudo antecipa. Novidade nenhuma, apenas uma boa notícia, chove mais que a média, em fevereiro, pelo menos, por enquanto. Sai, ainda noite, para ir a casa da filha, acordar e levar a neta à escola, santo remédio para todos os males. Um “oi” cansado da filha, cansada pelo nono mês de gravidez e vai a cozinha preparar o leite da amadinha. Acorda-a com beijos e lá vai ela, com cara de boneca amassadinha, para o ritual, xixi, uniforme, leite com chocolate, bisnaguinha e creme dental na escova ( não é pasta ) e um rabinho de burro ornando a cabecinha.

Mochila e lancheira no carro e partem para o ensino fundamental, base quem sabe, para um futuro melhor, a educação leva de casa. Mil bons dias para quem se encontra e um beijo breve de despedida, até a hora da saída. Volta pra casa, um beijo na amada já desperta e esperta, um abraço e um “bom trabalho” para o filho e uma lidinha mais relaxada no jornal, que teima em dar más notícias. Chegam, quase que juntas, a cuidadora e a secretária do lar, com línguas afiadas e causos diários e diferentes a cada manhã. Levantam os dois velhinhos e seus aiaiais, uma com Parkinson e início de Alzheimer e outro com as sequelas de AVC e sete cirurgias, como se gato fosse, com suas sete vidas. Instala-se o papo sem fim, com histórias sem fim, muitas sem pé nem cabeça, a meteção de pau no governo desgovernado é unanimidade, nessa Babel de um só idioma. Busco a paz no Recanto, lendo seus poetas e seus encantos, até o convite para ajudar na cozinha com os dotes culinários, que herdei de mamãe, e junto com o meu amor, preparar os quitutes para o almoço.

Quase meio-dia, buscar a neta no colégio e saber de seus progressos é um bálsamo, e lá vem ela contando seus aprendizados e as lições de casa a fazer. Hora de reunião, à mesa, mínimo 9, máximo 11, quando estão genro e nora que trabalham em outras cidades e nem sempre estão presentes. Com a graça de Deus a mesa é farta e o ti-ti-ti corre solto, só as mulheres falam, os homens apenas hummhumm, pois é, não diga e outros monossílabos menos expressivos. Após esse happening, saída para escola de língua inglesa da neta. Enquanto aguardo o tempo de aula é tempo de ler um de muitos livros que sempre me acompanham. Poesias de Quintana, Bandeira, Drummond,

Leminski, Pessoa, Cecília, Duvivier, contos de Sabino a Braga e mais tudo que cai a mão inadvertidamente ou não.

Na volta um lanchinho e a tarefa de casa completam a tarde. Tchau meu amor, amanhã cedinho o vô tá lá, e lá vai ela, deixando saudade mesmo estando sempre presente.

Já se foram também a cuidadora, a secretária. Os velhinhos dormem, um na poltrona, outra na cama e então é tempo de conversar um pouquinho com a cara metade, ou melhor inteira, e aproveitar, quando possível, esses poucos momentos para escrever um pouquinho. Logo, começarão os preparativos para o lanche de final de tarde, início de noite, a mesa um pouco vazia, com apenas 6.

Desce a noite, descansar é preciso, ler é preciso, escrever é preciso, até que.... Boa noite meu bem, amanhã é mais um dia de semana.

Arnaldo Ferreira
Enviado por Arnaldo Ferreira em 20/02/2015
Reeditado em 20/02/2015
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