Ikê Abá Retê
Ikê abá retê
Acho que dava certo orgulho na gente. Afinal, a questão era urgente. Pessoas poderiam morrer caso não tivéssemos sucesso. Era imperativo, portanto, que fossemos eficientes... muito eficientes. Aliás, tínhamos certa vergonha desta palavra. Muitos eficientes tinham vindo antes de nós, muitos viriam depois. Estranhamente, sentíamos algum orgulho em sermos os eficientes da vez.
A reunião começaria em poucos minutos. Eu não queria me atrasar, mas a chuva torrencial insistia em manter os carros em marcha lenta. As cachoeiras de água fétida que desciam pelas ruas inclinadas tornavam muito difícil e perigoso passar pelos cruzamentos. Pelo menos eu teria uma desculpa... e provavelmente muitos dos participantes também teriam o mesmo problema que eu... e a mesma explicação.
Tiveram.
Quando cheguei, meia hora depois do combinado, ainda não tinha ninguém no lugar. Quinto andar do edifício da administração central. Parecia feriado. Apenas o pessoal da recepção dormitava atrás do balcão. Havia, sim, um dificultador: ponto facultativo.
Aproveitei para ligar os aparelhos. Luzes, computador, projetor, ar condicionado e tudo o mais que seria necessário ao bom andamento dos trabalhos. Algumas piscadelas nos aparelhos indicavam instabilidade também na energia. Dei de ombros.
A chuva amainou... e as pessoas começaram a chegar.
Só pelo repertório de desculpas vi que teríamos dificuldades. A lenga lenga era a mesma: que chuva!
Assim que todos se acomodaram com as xícaras de cafés a frente, nosso anfitrião e chefe iniciou os trabalhos.
-Não preciso salientar a importância e urgência do que temos para tratar aqui. A crise é evidente e nos aproximamos do caos. Mais alguns dias e teremos que começar a ordenar cortes no abastecimento de água e a tendência, se tudo continuar como está, é que tenhamos que aprofundar o desabastecimento sem perspectivas de reversão em curto prazo. – Ele fez uma pausa enigmática... e continuou. – Nosso trabalho agora está no campo das ideias, criar mecanismos, antecipar fatos, gestar realidades... Alguém quer falar?
- Só um minuto... – Gritou um senhor de terno preto, levantando a mão e se dirigindo à janela. – Puta merda! É o meu carro.
Corremos para onde estava o senhor de preto e pudemos ver vários carros boiando em meio a um mar de entulho. O Córrego da Boa Vista estava transbordando toda a sua exuberância marrom, como uma fantasia longa e esvoaçante enfeitada por inúmeros pontos coloridos de garrafas pet.
Sem pedir licença, aquele senhor de poucos cabelos saiu apressado para ver o que poderia ser feito.
Em meio ao burburinho e expressões de medo que tomaram conta da sala, o chefe falou.
-Voltemos ao que interessa, senhores.
Sentamos.
-Como vocês sabem, já fizemos de tudo e estamos aqui reunidos para buscar soluções heterodoxas. Não adianta nada começarmos com sugestões comuns. Tudo já foi feito.
-Nada, o senhor quer dizer! – Gritou um cidadão de camisa verde e barba longa. – Esta situação já era prevista há anos e ninguém fez nada.
-Não adianta chutar defunto agora. Não é este o nosso objetivo. A questão é resolver a questão. Pô!
-Eu já tenho uma solução diferente. – Gritou Alaor, sentado na primeira fila.
Eu até sabia qual era a carta na manga que o companheiro detinha, só não acreditava nela. A questão é que o Alaor sempre fora um cara meio estranho. Daqueles que andam de alpargatas e blusinhas curtas de algodão encardido. Exato! Do tipo que sobe em árvore e protesta contra tudo e o que quer que seja. Mas neste episódio da falta de água, até ele tinha se assustado. Quando me disse, em segredo, qual seria sua contribuição achei que estava de brincadeira... não estava.
-Proponho um “brainstorm”! - gritou uma moça de cabelos avermelhados e azulados, sem dar atenção ao natureba.
-Apesar da ironia da expressão, acho que é este o caminho. –Disse o chefe, com enfado.
-Então está bem. Vamos começar já. Todos vão dizendo o que tiverem na cabeça, sem pensar.
Por alguns instantes um silêncio sepulcral tomou conta do quinto andar. A chuva tinha passado e nem o som das cachoeiras do asfalto podia ser ouvido.
E começou a avalanche: bombardeio das nuvens, transposição de rio, dessalinização, trazer iceberg, aumentar o racionamento, colher agua da chuva, queimar mangueiras, proibir chuveiros, fazer a dança da chuva.
Alguns riam enquanto os palpites eram verbalizados... mas este último pensamento acabou por gerar gargalhadas.
Alaor, o dono do palpite, continuou sério... e, mais que isto, parecia estar com uma expressão de vitória.
O ponto era que, como ele já tinha me dito, uma visita oportuna chegara a São Paulo naqueles dias. O chefe Uiriauã, da tribo Aiabêo, tinha vindo participar de um congresso de nações indígenas... devidamente acompanhado de seu pajé... Uiriatutu. Juro que, enquanto ele me relatava a história, mais me parecia uma brincadeira de trava língua. Não era.
Como eu estava ao seu lado, perguntei em um cochicho discreto: o que ele vai fazer? A dança da chuva?
-Não sei... Mas o interprete lá do congresso me disse que ele tinha uma explicação para tudo isto. Se ele não dançar... acho que danço eu.
Ainda sentindo o peso de olhares de expectativa em nossa direção, percebi que Alaor fez um sinal para a secretária que levantou-se e foi até a porta receber o pajé. Muchochos de desesperança foram ouvidos pelos cantos da sala. Realmente, a figura daquele homenzinho de aparência frágil, com não mais de metro e meio de altura, enrugado feito um balão chupado que adentrou o recinto em passos lentos e firmes não inspirava muita confiança.
O silêncio ficou tão forte que era difícil de entender. Espantado, olhei para o semblante da plateia. Vi, juro que vi, olhos hirtos, hipnotizados, esperançosos e atônitos acompanhando o andar calado do homenzinho.
Com seus passos lentos que pareciam carregar parte da eternidade, ele foi até a janela e, nas pontas dos pés, espiou a fúria do nosso riachinho marrom.
Foram poucos segundos até que ele se virou para nós. O som do ambiente denunciou a volta da respiração de muitos. A expectativa agora girava entorno da tal dança. Também torci por isto... mas era, evidentemente, ridículo. Tínhamos acabado de sofrer uma grande enxurrada e... como nossos antecessores eficientes... queríamos mais do mesmo.
Mesmo assim, continuamos esperando a dança da salvação. Porém...
O pajé não dançava.
Ao invés da coreografia que esperávamos, seus lábios murchos e enrugados pareciam ter começado a emitir um som repetidamente.
Alaor fez sinal para que todos ficassem quietos. O som, diante do silêncio, parecia ter ficado mais forte. As pessoas foram se aproximando devagar. Todos queriam ouvir o sábio da floresta distante.
Alaor levantou a mão pedindo atenção.
-Consegui, acho que consegui entender o que ele está dizendo.
-Diga logo... – Pediu o chefe, aflito.
A plateia ansiava por saber o conteúdo daquelas palavras salvadoras...
-E então, o que ele está dizendo? – Insistiu o chefe.
Alaor virou-se para o pessoal as suas costas e falou:
-Ele está dizendo “Ikê aaní íma ig... Ikê abá retê”.
Foi um aaahhh geral.
-Isto tá todo mundo ouvindo, panaca.
Alaor não deu atenção aos protestos e levou quase meia hora para anotar as palavras do velho cacique em uma folha de papel para não esquecer. Até o pobre homenzinho já estava sem paciência e volta e meia olhava para o teto enquanto repetia pausadamente o que estava dizendo.
Assim que conseguiu anotar o que ouvia, Alaor pediu licença à secretária e tomou a frente do computador.
Buscou algum dicionário on line de línguas indígenas brasileiras. Várias opções surgiram na tela. Escolheu a que lhe pareceu mais promissora e clicou para abrir. Uma longa lista em ordem alfabética surgiu em poucos segundos. Com olhos ávidos e acompanhados por outros tantos que perscrutavam a tela em busca da resposta a toda aquela aflição ele, sem muita demora, foi achando a informação.
Mais alguns minutos e nosso amigo protestador escreveu na caderneta a tradução das palavras do velho pajé.
Ikê aaní íma ig... ikê abá retê --- Aqui não sem água... aqui gente demais.