UMA ROSA BRANCA O MAIS VERDADEIRO AGRADECIMENTO PELA VIDA
UMA ROSA BRANCA
O MAIS VERDADEIRO AGRADECIMENTO PELA VIDA
Nunca fui homem de me apegar a objetos, de guardar coisas velhas (às vezes passando uma vida inteira sem saber onde elas estão guardadas!), de ficar constrangido em jogar fora peças ou utensílios que não já não me servem mais, ou perderam o sentido na atual fase de minha existência. Mas há exceções. Algumas delas quase insignificantes, materialmente falando, sem o valor pecuniário que se poderia atribuir a uma joia, por exemplo, a um livro raro, um sofisticado aparelho eletrônico, ou a uma obra de arte. São pequenos objetos, simples, alguns mesmo frágeis, sem duração garantida, mas aos quais torna-se impossível atribuir qualquer valor concreto, uma vez que só o sentimento, o coração pode avaliá-los - e não é como médico que falo aqui, ao citar o coração... Objetos que nem sempre são lembranças, eles próprios, mas são elementos que me lembram de momentos fundamentais em minha vida, e não me deixam esquecer alguns valores fundamentais para mim. E por que escrevo sobre eles, aqui e agora? Não sei, mas talvez seja pelo fato de ter-me deparado, há dias, com um deles, casualmente, ao procurar por um texto médico importante, que eu desejava consultar. Mas deixe-me contar o começo disto tudo. É uma história simples, singela, que até hoje me comove, e talvez emocione apenas a mim. Mas que resolvi compartilhar com meus leitores assim mesmo. Talvez alguns de vocês consigam tocar, mesmo que de leve, o quanto isto significa de essencial para mim.
Certa manhã, nos idos de 1979, ao chegar para mais um plantão, como neurocirugião do staff titular de todas as quintas-feiras, das 8h às 20h (e também aos domingos, das 20h às 8h), num dos maiores hospitais de emergência na zona norte do Rio de Janeiro, o Hospital Estadual Getúlio Vargas, na Penha, realizei as visitas de praxe, nas abarrotadas salas de atendimento. A visita sempre acontecia primeiro pela sala das crianças, logo a seguir pela das mulheres e dos homens, e depois, na mesma ordem de pacientes, pelas enfermarias. Uma mui jovem paciente, que chamarei aqui por RK), nos braços de uma mulher muito aflita, chamou- me particularmente a atenção. Procurei me inteirar do que havias acontecido, e logo soube: menor, três aninhos de idade, com história de estado febril, vinha no colo da mãe (erradamente assentada no banco dianteiro do automóvel, dirigido pelo pai), quando, na Av. Brasil, junto à linha divisória de ônibus, um tijolo delimitador, projetado pelo pneu traseiro de veículo não identificado, atingiu como uma bala o vidro dianteiro e explodiu na região frontal esquerda da criança. Examinando a pequena, constatei a gravidade do caso. Uma ferida impunha-se, com perda de massa encefálica, coma profundo, pupilas midriáticas e fixas, reflexos osteotendinoso em descerebração, reflexo cutâneo plantar com sinal de Babinski bilateral, indicando grave sofrimento cerebral. A decisão foi encaminhá-la imediatamente ao centro cirúrgico, no qual deu entrada às 8h20. Feitas a homeostasia e a limpeza mecânica na área do afundamento frontal, craniectomia e lobectometia frontal esquerda, foi retirada uma porção tendínea do joelho direito, denominada fascia lata, com auxilio do cirurgião geral, que foi cuidadosamente suturada no lugar da extensa porção da meninge - uma espécie de membrana que envolve o cérebro - procedimento este denominado de meningeoplastia. A cirurgia durou cerca de oito horas, e terminou com a pequena paciente removida para o Centro de Tratamento Intensivo. No final do plantão, ao ser examinada, os reflexos neurológicos e os das funções vitais haviam melhorado bem, mas a criança continuava em coma.
No plantão seguinte , domingo à noite, eu soube que, por ter um plano de saúde, a menininha fora removido para um outro hospital, liberando assim um precioso leito hospitalar para quem dele fosse necessitar.
Passaram-se cerca de dois meses, e por coincidência, também num plantão da manhã de quinta-feira, fui chamado para atender a sala de crianças. Lá chegando, deparo-me com a pequena RK, agora totalmente recuperada, com um pequeno curativo na região frontal, e toda vestida de branco. Trazia uma rosa branca em suas mãozinhas, e veio correndo ao meu encontro, atirando-se nos meus braços. Com um lindo sorriso, e num gesto gracioso, ofereceu-me a rosa branca que trazia, enquanto me dizia, com aquele fiozinho agudo de voz:
— Obrigada, dotô!
Fiquei paralisado, enquanto recebia a rosa branca daquelas mãozinhas ainda tão jovens, e enquanto disfarçava uma lágrima teimosa e inconveniente que me aflorava aos olhos, balbuciei como pude um débil “de nada, meu amor”.
RK foi atendida no meu consultório particular por anos a fio, por iniciativa dos pais, que me enviavam uma foto dela por ano, uma a cada aniversário, até que ela atingisse a idade adulta. Hoje totalmente recuperada, casou-se e teve filhos. Formou-se e é professora em educação física, bailarina e professora de balé. Mantenho com carinho um pequeno álbum, com as fotos que me foram enviadas , mas não sei onde ele está hoje. Guardei essa história nos recessos da memória, e embora ela sempre me tocasse o coração, aos poucos aquilo esmaeceu, como talvez estejam esmaecidas as fotos, que guardei em algum lugar, e ficou quase que como uma referência remota.
Há alguns dias, no entanto, ao abrir um velho de medicina, para fazer uma consulta e estudar algumas comparações teóricas, encontrei a rosa branca com que RK me presenteou naquela manhã. Aquilo foi quase um choque para mim. Um choque positivo, emocionante, mas efetivamente (e quase fisicamente) um choque. Todo aquele drama, aquele sofrimento, nossa luta para salvar a garotinha e resguardar o seu bem-estar, desfilaram em incrível velocidade diante dos olhos de minha mente, finalizando com a menininha me olhando nos olhos, emocionada, ela também, e me entregando aquela flor ainda fresca e soberanamente linda. Agora ela estava seca e amarelecida, amassada pelo peso das páginas, mas de alguma forma ainda emanava vida, energia e uma alegria que parecem permanecer para sempre, indiferente à ruína material que a consumiria um dia, assim como a tudo, inclusive a mim próprio. Mas aquilo que dela emanava, não apenas a transcendia e permanecia impassível, diante da marcha do tempo, como remetia-me a mim mesmo, à minha vida inteira e à minha escolha pela medicina, como que lembrando-me do essencial, invisível aos olhos, às vezes inexprimível, mas presidindo sem reservas a minha vocação de médico, e soando como uma promessa que me garantia, silenciosamente, que se quase tudo é provisório, passageiro, alguma coisa, uma essência, um sentido, sobrevive ao transitório, e imponderavelmente, permanece.