A BOA NOTICIA DO PLANTÃO
A BOA NOTICIA DO PLANTÃO
Na passagem do plantão, o relatório do colega que você está rendendo sempre traz informações detalhadas, para a gente se localizar bem. Nem sempre são boas notícias, porque a rotina nos hospitais públicos é sempre difícil. No Hospital Estadual Getúlio Vargas, na zona norte do Rio de Janeiro, meus plantões eram sempre aos domingos — das 20h às 8h da segunda-feira — e às quintas-feiras, das 8h às 20h. E quando cheguei, pela manhã, àquele plantão das quintas, o cenário não era dos mais fáceis. Eu seria, como de hábito, o único médico do staff na especialidade de neurocirugia. Até aí, tudo bem, eu já estava acostumado com aquilo, mas naquela manhã meu colega João Batista, que chamávamos Janjão, estava particularmente ansioso em me passar a bola. Além de ser o neurocirurgião de plantão, ele era o substituto do chefe de equipe, que estava de férias.
— Aí, Paulão — disse-me, acelerado e esgotado — a situação hoje está muito complicada pra gente. De uma leva só, ganhamos, entre homens, mulheres e crianças, uns 35 politraumatizados, de um acidente terrível entre uma carreta e um ônibus, na Av. Brasil. Alguns, inclusive tiveram de ser entubados. Os cirurgiões já examinaram e falaram que é tudo contigo, brow!
Poxa, quem se sentiu traumatizado ali fui eu! Mal chego e já tem tanta gente acidentada! E eu o único neurocirurgião naquele plantão!
— É, meu querido, sobrou pra você. Aproveite e leve de bônus também dois baleados no crânio. Um PM e um traficante. Aliás, se eu fosse você transferia esse aí para o Souza Aguiar, ou qualquer outro lugar onde possa contar com uma escolta armada e muito bem armada, porque não temos segurança, nem posto policial aqui no Getúlio Vargas!
Que ótimo! Pelo jeito um plantão não ia resolver, eu teria de morar um tempo aqui no hospital! “Mas tem mais!”, entregou Janjão. E desfiou um rosário surreal de eventos absurdos, que iam desde dois traumatismos cranioencefálicos, na sala das mulheres (cirurgia certa e urgente!), até uma acadêmica em franco despautério, vinda diretamente do Hospital da Posse, de Nova Iguaçú, trazendo uma criança com cefaleia, rigidez de nuca, vômitos em jato e o escambau, e em opistótono contínuo, numa meningite brava, meningogócica altamente contaminadora, para eu puncionar e dar destino, já que o Hospital de São Sebastião, especializado em doenças infectocontagiosas, prestes a fechar, obviamente não oferecia condições de atendimento, muito menos com os seus médicos em greve. Recheando esse quadro privilegiado do caos, a anestesista do plantão dele já tinha ido embora, estressadíssima, e o do meu plantão nem havia ainda dado sinal de vida. Além disso, haviam acabado as roupas do centro cirúrgico, a gaze, o esparadrapo, a dipirona, e tanto o aparelho de raios X como o tomógrafo estavam quebrados. Interrompi sem cerimônia aquele relatório bizarro:
— Tá de bom tamanho, Janjão, chega! Você não tem pelo menos uma, uma única boa notícia, nesse plantão, para me aliviar desse circo de horrores não?
Ele desanuviou por um instante aquele semblante carregado, tenso, e sorriu como um menino.
— Claro que tenho. Sabe a Francisnete, aquela enfermeira novinha, 19 aninhos, cara de anjo e corpaço de sonho? Aquela de quem você disse que se casaria com ela, e até já jogou um charme pra você?...
Meu deus, aquilo tudo no meu plantão! Um anjo do Paraíso me salvando daquele inferno todo! Não quis arriscar nada, preferi que João me desse a notícia completa.
— Aquela coisa de louco? Claro que sei, Janjão! O que tem ela?
E ele, orgulhoso:
— Pois é. Tô comendo...
Putz...ninguém merece...