O Meu Avô Manuel

A Casa, de tijolo sem reboco, confundia-se com a cor da terra e fazia um contraste suave com a serra que começava a definir-se atrás, inclinada e pedregosa até terminar misturada com o azul e a luz. Da estrada nascia uma rampa de cerca de trezentos metros que nos levava a um pátio onde o cimento deixava nascer ervas nas rachas e nas caldeiras das árvores. Nas traseiras o espaço era limitado pela enorme cozinha, pela despensa, pelos quartos exteriores e pela casa do forno e da lenha. À esquerda começava a horta e, antes dela, a capoeira; à direita a latada, o pomar, as leiras de flores, a estufa. No fim dos caminhos duas cubatas abrigavam o pessoal que, nesse dia, chegara mais tarde ao serviço. Parentes de Dzimbi, o homem de confiança do meu avô, vieram morrer nos limites da lavra. Tinham fome. Os outros dois sobreviventes, depois de recuperados com doses suplementares de pirão e peixe seco, rebocaram a casa e caiaram-na. Recolhiam, depenavam e comiam centenas de pequenas aves que, chocavam na alvura das paredes e caiam, atordoadas ou mortas. A vida era, ao tempo, muito dura. Da Metrópole chegavam notícias distorcidas. Carmona fora reeleito Presidente da República em Fevereiro de 1942 mas estava-se no fim do seu mandato e nenhum dos pendentes que prometera resolver mudara o sentido daquela paz podre. Nem estradas, nem pontes, nem facilidades monetárias ou liberdade para importar alfaias, transportes. Os alemães ocupavam França e Portugal, receando o futuro que se toldava para todos na Europa, juntou-se a Espanha para formar o Bloco Peninsular. Outras prioridades abandonavam os colonos à sua sina. Faltava tudo e só quem tivesse terra poderia ter gado e comida. Isso fazia toda a diferença. Dos muitos filhos que teve o Avô Manuel já se destacavam os mais velhos. Eles a trabalhar na cidade, elas a tentar, pelo casamento, fugir aos rigores do velho. Minha Mãe casou com o primeiro janota que apareceu e, depois de uma festa íntima, foi viver para o Huambo. Também ela se encheria de filhos, trabalhos, cuidados. O Avô, esse ficou na sua rígida função de chefe da casa. Temiam-no os filhos, a Mulher e os netos. Depois de ficar muito tempo a olhar para a estrada, ele lia livros que um vizinho emprestava. Recordo as novidades literárias colocadas na estante de carvalho: “ O Estrangeiro” de A. Camus, “ Noite sem Lua” de John Steinbeck, “ A Família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela, “Avieiros” de Alves Redol ou “ Aldeia Nova” de Manuel da Fonseca. O meu Avô era um tipo ecléctico e solitário. Depois que saiu da terra natal, no interior serrano de Portugal, nunca mais escreveu a ninguém e nunca teve notícias dos seus. Ia dando os nomes dos irmãos e dos pais aos filhos ou, quando mais impressionado por qualquer história que lia, nomes dos respetivos personagens. Ganhou prestígio local e foi dono de várias propriedades que acabaria por perder em maus negócios. Um dia sentiu-se tonto. Chás de tudo, massagens no ventre, ventosas no peito e nas costas ou pachos de vinagre na testa não alteraram o curso da doença. Morreria sem que a minha Avó tivesse notado algo de estranho. Com o tempo a casa ficou desabitada, a estufa sem plantas, as flores não voltaram a ser cultivadas e o mato rodeou os espaços até ao limite cimentado do pátio e da eira. O Êxodo, por ocasião da Descolonização, fechou este capítulo da crónica da nossa família. Perdemo-nos uns dos outros, ganhámos raízes em terras diferentes. Reencontramos toda a gente nos funerais e, muitas vezes, não sabemos quem é quem, tantos somos, tão diferentes estamos.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 04/02/2015
Reeditado em 04/02/2015
Código do texto: T5125637
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