TIRE FRÓIDE DA SALA (EC)
- Não vai dar certo!
- Pelo menos tente...
Ela se rendeu e aceitou tentar conviver com um “Canis lupus familiaris”, o mais antigo animal domesticado e dominado pelos “Homo sapiens” - desconsidere-se a domesticação de maridos por esposas e sogras.
Entretanto, tinha convicção da impossibilidade de uma convivência pacífica entre ela e o canídeo.
Fazia terapia há algum tempo, resolveu dar uma oportunidade ao terapeuta em sua teoria da necessidade de preencher sua solidão.
- Posso arrumar um para você, animou-se o terapeuta, que participava de uma ONG em defesa dos “Cães Esquecidos às quartas-feiras à porta de Danceterias da Terceira Idade”.
- Peralá, doutor! Eu lá sou mulher de adotar cachorrinho abandonado? Esses que vêm cheios de vícios. De vícios já me bastava meu finado marido... Quero um com pedigree.
O terapeuta não se deu por vencido.
- Meu cunhado tem um Pet-Shop e conhece criadores. Qual raça você prefere?
- Um não seja muito grande que atrapalhe minha visibilidade em recepções... Nem muito pequeno que possa ser esquecido em alguma bolsa. Ah! Nem muito gordo para não dar motivo a frases do tipo: “O cão é o retrato do dono”... Nem muito magro para eu poder ter esperança de ouvir a frase.
Semanas de sessões após, chegaram a um acordo... Assim, feitas diversas pesquisas, ela finalmente adquiriu o cachorro num site.
Vacinação obrigatória, vigilância sanitária, taxas de entrega, caixas especiais?
Indagava-se por que o filhote não poderia ser simplesmente enviado por SEDEX para sua Caixa Postal.
Enfim...
Procurou um manual de uso, mas não veio junto com Fróide, nome que achou charmoso para o cachorrinho e apropriado para a situação.
Não conseguindo interpretar o significado de cada diferente latido, logo no primeiro dia de convívio, marcou uma sessão extra com o terapeuta.
Levou o animalzinho para o caso dele necessitar de alguma análise junguiana, cognitiva ou existencialista.
Uma surpresa!
Causou atropelos e desentendimentos na recepção do edifício que não permitia, taxativamente por placas e seguranças, a entrada de animais. Apesar das rurais paisagens com galinhas, vaquinhas, pássaros engaiolados e cães dorminhocos sob as cadeiras de balanço em alpendres nas fotos que ornavam as paredes.
Exasperou-se com a injustiça. Fora o terapeuta que indicara o cãozinho e não podia levá-lo ao consultório.
Exigiu igualdade de tratamento para os cães, afirmando que se o cão não pudesse subir chamaria a polícia, associações protetoras de animais, ONGs, o Green Peace, et coetera, et coetera, et coetera.
Com a intervenção do terapeuta, convenceram-na e aceitou que uma das funcionárias ficasse com Fróide ao colo, prometendo cuidá-lo enquanto durasse a sessão.
Já no hall do elevador começaram as explicações:
- Doutor, não vai dar certo! Ele fez xixi debaixo da mesa da cozinha e rasgou minha pantufa de cetim.
No consultório, com calma pertinente ao seu mister, após um cafezinho, o terapeuta tentou tranquilizá-la:
- Tem de compreender que ele é como uma criança. Não nasce sabendo das regras sociais. Precisa ser educado.
- Criança! Ele nem tem bunda para umas belas palmadas. Posso puxar-lhe o rabo?
- Nem pense nisso... Não se pode agredir um cão. Você não ouviu falar na Lei da Palmada? Faça analogia.
- O que eu faço, então?
- Paciência é o segredo.
- Peralá, doutor. Eu faço terapia por causa de minha ansiedade e o senhor me induz a comprar um cachorro que eu não queria e agora vem me sugerir para ter paciência? Além disso, como ficará meu TOC? Meu apartamento já está uma bagunça em apenas um dia.
Muita conversa, atraso no paciente seguinte, foi convencida a dar uma oportunidade às mudanças em sua rotina.
Voltou para casa...
Não sem antes ser chamada à atenção quando saía do prédio, para não esquecesse o cãozinho sob a guarda da funcionária – esqueceram-se?
Olhou para sua linha do tempo colada na geladeira.
Academia, yoga, análise, almoço, shopping, telefonemas do dia...
Como compatibilizar a linha do tempo do canídeo? Passeio matinal, passeio vespertino, banho, tosa...
À luta!
A Academia não foi complicada. Disponibilizavam um espaço para os cães de médio porte esperarem seus donos. Lembrava um bicicletário. Cada um preso em sua corrente. Imaginou-se no lugar do rapaz que tomava conta deles. Diversos cães lambiam sua mão, enroscavam-se nas pernas, entre latidos estridentes...
Era feliz e não sabia. Tinha apenas um.
Veio-lhe uma ideia para melhorar seu relacionamento com o bichinho.
Ao invés de usar o carro para vencer as poucas quadras de distância passaria a caminhar. As vantagens eram significativas: Perder um pouco de calorias e aproveitar para o passeio matinal.
Descobriu alguns senões. Precisava arrastar o cãozinho distraído pelos postes, por outros cães, por pessoas que paravam para conversar a respeito da graça, charme e beleza dos cães.
No terceiro dia de atraso à aula, voltou ao velho e tradicional carro.
- Ai! Ele solta pelo... O banco do passageiro estava cheio deles. O traseiro também...
- Não! A fivela do cinto de segurança não é para morder.
- Pare de lamber-me...
- Socorro! Um adestrador... Um dog-walker... Uma babá... Um cuidador...
Viu no túnel um lampejo de paz.
A ansiada quinta-feira... Dia de banho e tosa.
Uniria o útil ao agradável...
Mãos, corte e hidratação...
Cabeleireira e manicure.
Agendou para o mesmo horário.
Claro que a manicure atrasou... A cliente anterior fez terapia... Contou todas as novidades da semana... Capítulo a capítulo das novelas.
Celular tocando...
- Vou demorar só um pouco... Estou na cabeleireira lavando os cabelos... Meia horinha chego aí... Precisam fechar? Amanhã eu pego... Sou a paciente do terapeuta que vocês providenciaram o cachorro, lembra-se?... Não pode?
Saiu com os cabelos sem corte... Encontrou o pet shop a meia porta. Um humor duvidoso a atendeu e passou-lhe o cão. O Fróide estava lindo e charmoso... De gravatinha azul...
Olhou o espelho do retrovisor para acertar a maquiagem... Assustou-se ao ver uma mulher suando em bicas, cabelos amarfanhados. Piscou e beliscou-se. Era ela mesma.
Ao fundo, no banco detrás, o cachorrinho corria de uma janela para a outra, dando latidinhos para os motoristas dos outros carros.
Alguns apontavam e acenavam.
Teve ímpetos de jogá-lo pela janela, pois além de incomodá-la com os latidinhos, chamava a atenção para ela naquele estado deplorável à vaidade. Salvou-o as unhas recém-pintadas. Estragasse-as, seguramente seria perda total.
No trânsito parado mastigava a situação.
Poderia estar em casa, cabelos arrumados, banho tomado, preparada para a novela.
Mas, não! Estava ali, refém do Fróide. Ainda teria que dar água, ração e levá-lo para as necessidades fisiológicas de antes de dormir.
Finalmente, em casa...
Cachorrinho acomodado, um banho, uma roupinha fresca e agora só faltava levá-lo para o derradeiro passeio diário.
Preparava o espírito para ter que recolher resíduos sólidos da calçada, mas...
- O que é isso? Berrou...
Era aquilo mesmo. O cãozinho já fizera o cocô... No tapete persa.
Gota d´água!
Telefonou imediatamente para seu terapeuta narrando o acontecido.
Praticamente, como em uma sessão de terapia, só ela falava.
Repentinamente, parou alguns segundos e atropelando as palavras:
- O que o senhor quer dizer com isso? Tirar o Fróide da sala?
Desligou, procurando acalmar-se.
Fez diversas fotografias. Da pantufa de cetim rasgada ao cocô.
Tudo...
De manhãzinha, telefonou para uma empresa de entregas expressas.
Embalou o cocô e o cachorro para presente.
Endereço?
Consultório do terapeuta.
No cartão, ilustrado de cãezinhos, uma mensagem agradecendo os serviços e desmarcando os horários de sessões.
Na mesinha da sala arrumadinha, deixou uma foto do Fróide.
Uma gracinha.
Não late, não faz necessidades, et coetera, et coetera, et coetera...
Quando bate a ansiedade, olha a foto e sara...
-------------------------------------------------------------------------------
Este texto faz parte do Exercício Criativo – Fêmea no divã
Saiba mais, conheça os outros textos:
http://encantodasletras.50webs.com/afemeanodiva.htm