O MENINO DO BALÃO AZUL

 
Escondido na fachada de um prédio que teimava manter-se de pé, Samir olhou à volta, a destruição do seu bairro ia agravando a paisagem, resultado da luta fraticida entre fações rivais.
Sempre vivera no meio do rebentamento de bombas e fugindo dos desabamentos de prédios já esventrados.

Ficara sem parente algum desde os quatro anos, todos tinham sido mortos por bombardeamentos cegos ou por balas perdidas. Então fora alvo de uma alma caridosa, a senhora Ahlam, que conduida o deixava pernoitar num vão semi-destruído da sua casa, sobre um colchão parcialmente rasgado.
Havia poucos meninos nessa zona do seu bairro, orfãos na maioria, ou tinham sido mortos ou haviam fugido para a zona oeste, supostamente mais segura. Assim, durante várias horas do dia, vagueava pelos escombros e via, escondido, homens armados a patrulhar as ruas.
Tirando um cão ou um gato escanzelado, vadio e cheio de fome como ele, não se vislumbrava vivalma. Comia dos restos que apanhava aqui e ali, por vezes a senhora Ahlam dava-lhe parte de uma lata de carne com feijão ou então tinha a suprema sorte de encontrar um resto de ração de combate que os soldados abandonavam, já saciados.

O que mais gostava de fazer era passear no extenso areal da praia, distante da cidade quase duas horas a pé. Desde o início da guerra que estava sempre deserta, devido ao risco de tiroteios esporádicos,que gradualmente iam ceifando vítimas civis, inocentes.
Tinha medo de ser apanhado pelos xiitas, ouvira a senhora Layla, a irmã da senhora Ahlam, falar aterrorizada em sevícias praticadas por soldados das milícias contra mulheres e crianças sunitas, por isso saía do seu abrigo ainda de madrugada e percorria a distância com o maior cuidado.
Apesar de muito novo, fizera há pouco seis anos, já vira vários mortos espalhados pelas ruas, fruto de uma guerra que não entendia, pois os envolvidos eram todos árabes. Essa vivência de animal acossado dera-lhe um curso de sobrevivência e habilmente ia vivendo o seu dia-a-dia sem maiores problemas.
Nessa manhã caminhava por entre as paredes esburacadas de balas, no meio das pedras espalhadas por todo o lado, afastando-se progressivamente das zonas há muito desabitadas. Depois enveredou por estreitos caminhos pedestres serpenteando dunas, até finalmente chegar a um pequeno promontório rochoso cercado de areia, onde se obtinha uma boa panorâmica do mar calmo e imenso.
Em tempos vira numa foto de calendário um grande balão azul transportando pessoas sobre um imenso espaço verdejante.
Há muito sonhava que um dia viajaria num balão desses, dominando o mundo através da sua habilidade de piloto nos ares. Mas o que queria mesmo era fugir daquele lugar que só lhe trouxera mágoas e tristeza.
Sempre que ali vinha, pensava na viagem de balão, era o seu maior sonho de menino.
Via-se percorrendo os ares sobre outras terras, outras gentes, certamente mais pacíficas, que não se matassem sem razão.
Adormeceu, cansado, sob um sol que aos poucos lhe foi aquecendo a pele até ficar desconfortável. A sua tez escura, habituada à canícula, acabou por não suportar o calor intenso e então foi para um abrigo de pescadores onde habitualmente se acoitava, formado por um conjunto de tábuas desconjuntado mas que protegia razoavelmente do sol. Aí se deitou e adormeceu.
Sonhou com o balão azul, depois com uma forte tempestade, os trovões abanavam a terra, os raios sulcavam os céus, traçando com luz imensa um trajeto irregular. Acordou sobressaltado e também cheio de fome. Com cuidado, assomou a uma elevação mais pronunciada na duna. Afinal não era tempestade, viu aterrorizado dois carros de combate deslocando-se ruidosos, numa perigosa proximidade. Ainda mais perto, vários homens armados caminhavam pela areia na sua direção.
Escondeu-se mas não foi suficientemente rápido. Devia ter sido visto pois instantaneamente uma chuva de balas caiu sobre o local onde se encontrava e o pequeno corpo desabou sem vida na areia quente, crivado de balas e tingindo-a de vermelho.
Alguns instantes depois, alguns soldados chegaram junto do cadáver de Samir e encolhendo os ombros perante o espetáculo, continuaram o seu caminho rumo à cidade.
 
 
                                                       
Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 30/01/2015
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