Pelo menos não fui abandonado!

Nasci na zona norte de SP, o caos já tomava conta da minha família, não fui uma notícia muito aguardada por meus pais, relutaram, mas mesmo assim me assumiram, pelo menos não fui pra sarjeta ou para um lar de crianças abandonadas.

Mas eu me pergunto; será mesmo que não fui abandonado?

Eu tinha uma família, na teoria, porque a realidade era bem diferente.

De tão ocupados que eram, pouco tempo passávamos juntos, sempre havia um contratempo, quando finalmente eu conseguia trazer meu pai para assistir um filme na TV, o telefone tocava e o trabalho o consumia novamente. Eu me contentava com alguns minutos de filmes assistidos, gostava de ver a risada do meu pai em uma cena que eu achava engraçada, gostava de ouvi-lo falando sobre os personagens e sempre tentava admirar o mesmo personagem que ele, mesmo sem entender a razão de admiração.

A vida foi nos engolindo e os momentos de descontração foram se tronando cada vez mais raros. Nosso tempo junto se transformava em discussão.

Tenho poucas lembranças de uma família unida, mas mesmo assim eu pensava, tem criança por aí que foi abandonada pelos pais eu tenho que agradecer por estar aqui.

E de novo a pergunta; será que não fui abandonado? Afinal o que é abandono?

Não havia fartura em casa, mas também não passei fome e sempre que dava eu conseguia aquele brinquedo que queria, ou até aquela bola de “capotão” oficial.

Mas de que adiantava? Ganhava a bola e sonhava com meu pai jogando comigo, via outras crianças em parques com os pais, enquanto andava de bicicleta, sozinho pelo bairro.

No fim aquela bola trazia mais tristeza que alegria, toda vez que olhava pra ela, imagina várias cenas que sei que eu não veria.

A imagem de família pra mim era essa, eu sozinho e eles trabalhando.

E tinha a obrigação de ser feliz, porque afinal, eu tinha uma família, enquanto vários nem isso tinham.

Mal sabe meu pai que poderia ser uma bola normal, sem ser de capotão, mal sabe ele que eu não preciso de um tênis de marca tanto assim, mal sabe ele que trocaria tudo isso por um sábado tranquilo no sofá, ao lado dele.

Mal sabe minha mãe a saudade que sinto dela, de uma das únicas imagens da gente brincando no chão do quarto, com meus bonequinhos.

Pra tudo isso não era preciso tanto trabalho, não era preciso tanto dinheiro ( e olha que não tínhamos muito) eu só queria a presença deles, o tempo deles.

Mas afinal, do que estou reclamando? Eles estão aqui! São meus pais! E pelo menos não fui abandonado.