Seria gostoso o meu francês...?

Foi o Zé Almeida que me introduziu no conhecimento

das iguarias e bebidas finas que antes só de cinema eu

conhecia. Eu tinha dezessete anos, sabia mais francês

do que ele, já nos seus vinte e tantos. E nos havíamos

tornado colegas naquele terceiro ano clássico, ano da

graça, 1968.

Paris estava então literalmente em chamas com o Daniel Cohn Bendit, dos cabelos de fogo. Mas o fogo que começou a me arder as entranhas foi bem longe dali. Aux rives placides de l’ Itapecerica. Divinópolis.

Eu vinha da pensão do Nelson - que ele insistia em

chamar de República e só admitia rapazes - numa

caminhada de 5 ou 6 quarteirões até chegar à Goiás, a

eixo comercial principal da cidade, onde morava o Zé.

Prédio de cinco andares - acho que ele vivia no quarto

- com elevador, um luxo pra época - praquele interior.

O elevador, já não me lembra se daqueles de gradinha

pantográfica ou de porta deslizante era ainda coisa

rara na cidade de seus oitenta mil almas, que já

achavam aquele prédio um arranha-céu.

Zé me recebia sempre com fidalguia, oferecia-me um

trago - que ele próprio escolhia entre as suas muitas

garrafas de belos rótulos estrangeiros, que se

acompanhava de um pratinho azeitonas um dia, cubinhos de queijo noutro, ou fatias de presunto.

Nas lições du français avançávamos pouco. Logo o

assunto se diluía, tanta coisa havia a falar,

comentar, palpitar. Zé, com a sua experiência de funcionário público, coletor ou exator, levava vida tranquila, já casado, e ajudando os irmãos menores. Vi-os eu a todos, entrando e saindo do apartamento e sempre nos saudávamos, mas não íamos mais além.

Com pouco, tava o Zé, às vezes, a me mostrar a vista da janela dos fundos, pairando alta sobre o casario vizinho, com o Santuário ao fundo e, a meio caminho, o sobrado onde vivia Dona Didi, nossa mestra de Geografia. Essa, embora não me ocorra que convidasse colegas, ou muito menos alunos à sua casa, jactava-se, no entanto, em sala de aula das

bebidas importadas e outras delicadezas que possuía - "...e que haviam sido roubadas, um escândalo, por um

vândalo, que a casa lhe arrombara".

Meio grogue, ouvindo música em francês - e tentando

copiar a letra - Christophe era o mais frequente na

vitrolinha do Zé, dava-me vontade às vezes ser o

imaginário vândalo de Dona Didi, só pelas bebidas, eu

juraria, ou urinaria? - indo fazer meu xixi.

Por uma dessas coisas estranhas do destino, o bom Zé, ao fim daquele ano levou pau: perdera por uma simples disciplina, e foi forçado a repetir o ano. Uma

ignomínia. Maior do que o roubo das garrafas

importadas da casa de Dona Didi. O consolo que me

restou, no entanto, foi de que fora em latim, e não em

francês a derrocada do amigo Zé, cujos licores e

outros sabores, jamais voltei a provar.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 30/01/2015
Reeditado em 23/09/2023
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