O CIRCO

Sem opções senão um cinema que exibia, além dos raros filmes, uma das maiores coleções de pulgas de que se tem notícia e que, tão logo apagadas as luzes, caminhavam marchando em rigorosa fila indiana, perfeita e ordenada como um exército nazista rumo aos trinta e dois espectadores, habituais doadores de sangue, qualquer evento na pequena cidade gerava as mais extraordinárias expectativas.

Como que regidas pelo maestro de uma sinfônica, a cada trecho fragmentado e descontinuado da película com seus inúmeros remendos, as luzes eram acesas e as guerreiras pulgas desapareciam como num passe de mágica. Reinício da sessão, após quinze ou vinte minutos das seguidas paralisações, e lá vinha o ordenado exército em novo ataque.

Gengis Khan, vivo fosse, morreria de inveja. Sun-Tzu, em "A Arte da Guerra", comeria sua obra.

Na antessala do velho barracão adaptado para abrigar o cinema com as exibições quinzenais, coroando um espelho que mal e mal refletia o foco de uma só lâmpada, dois cartazes bem descoloridos com Clark Gable e Lana Turner, lado a lado, adornavam a entrada.

O filme mais recente, chegado no ônibus das dezoito e trinta, com a sessão prevista para as dezenove horas, foi o Corcunda de Notre Dame, estrelado pelo Quasímodo e a belíssima Esmeralda, cuja plástica e beleza destroçaram os corações e alimentaram inconfessáveis pensamentos na maioria dos homens da cidade.

As mulheres, percebendo o interesse despertado e os cochichos dos maridos que, à boca pequena, comentavam certos detalhes da atriz, no dia seguinte escondiam suas mãos com as unhas nas cutículas roídas pelo ciúme. Aquilo é vagabunda de cinema, diziam com um muxoxo de despeito.

Transcorridos dois ou três dias com o habitual marasmo, eis que surge na avenida descalçada, sol ainda a pino, um bumbo cadenciado e a estridente corneta sob o brado gutural de um fantasiado animador.

Com a boca enterrada num megafone, como num surto de apoplexia, com os olhos a sair das órbitas e as veias protuberantes no pescoço sujo emoldurado por um lenço vermelho e verde, gritava a plenos pulmões: "Respeitáaaavel Púuuublico, acaba de chegar nesta beeela e acolhedooora cidaaaade o Ciiiiiirco Irmãossssss Caruso, famoso no mundo inteiro e com artistas internacionais.

Logo mais, às vinte horas, apresentaremos nosso espetáculo variado com palhaços, a atriz equilibrista chegada da Europa, o feroz leão africano, Athos o cavalo de Andaluzia, atrações diversas, sorteios, finalizando com o espetacular e inesquecível drama 'O Direito de Nascer'”.

Ele era o dono e diretor do circo, um dos palhaços - o outro foi contratado recentemente e também era ajudante para a montagem e desmontagem do picadeiro e assentos - o bilheteiro e encarnava o artista principal da peça dramática. O elenco contava, ainda, com mais dois auxiliares e uma artista de corpo, idade e rosto indefinidos já há muito atropelada pelo tempo que, além da peça teatral, fazia um número de discutível equilíbrio e contracenava com o palhaço.

Tempos difíceis!

Um velho e desdentado leão, de passado distante, cochilava magro e sonolento numa carroça gradeada empurrada por dois dos artistas internacionais, pedindo em sonhos que o mundo acabasse em barranco, de sorte que morresse, pelo menos, encostado.

Das longínquas planícies do Serengeti africano nada mais do que remotas lembranças, flashes fugidios, imprecisos. Imagens borradas e indefinidas ficavam cada vez mais longe, mais borradas e mais indefinidas. Afinal, lá se iam, ou foram, uns 50 ou 60 anos rodados de circo em circo até a decadência. Um asilo lhe cairia bem. Uma cova com um enterro simples, o seu sonho de consumo.

Sua alimentação se resumia em dois pequenos baldes de sopa diários, mas nem sempre tão diários assim, onde premiadas e raras, senão raríssimas, cabeças e pés de frango boiavam como náufragos. Alguns ossos, ainda que poucos, teimavam em disputar estranhas modalidades de esporte aquático. Os dentes, os poucos que ainda logravam equilibrar-se nas velhas gengivas, bambos, não permitiam esforços além dos bocejos cada vez mais frequentes. Há semanas, um dos restantes, aquele lá de trás da quase extinta arcada, enfrentava um brutal processo inflamatório. A dor, lancinante, desanimava-o até de lamber a sopa. Lágrimas habitavam os olhos, um deles já coberto pela catarata.

Sob o sol da tarde, no balanço cadenciado da carroça empurrada pelos artistas internacionais, o animal sentia um torpor preguiçoso, um mormaço de conforto, algo assim como uma sensação dolente que o impedia de sucumbir à coluna que o incomodava desde que o domador (o mesmo dono do circo) estalou, abruptamente, o chicote ao lado de sua orelha esquerda, a surda, para que se sentasse. O gesto brusco torpedeou sua coluna levando-o a caminhar torto. A cada movimento doía como se uma espada incandescente o crucificasse. Já não bastantes a dor de dentes e a coluna severamente avariada, sua unha da pata esquerda traseira, aquela que sustentava o ato de sentar, encravou há tempos e a tarefa exigia um esforço olímpico para se acomodar.

E, lá vinham as ordens, lembrava-se: estalo, senta; estalo, levanta; estalo, senta; estalo, levanta e, nos últimos anos, não fez outra coisa em sua miserável vida, a não ser sentir as dores atrozes dos dentes, da coluna e da unha encravada. A erisipela na cauda, com as moscas azuis a se alimentarem das feridas, nem mais o incomodava.

Dormiu, finalmente, pedindo aos céus que nunca mais acordasse. Rolou uma lágrima furtiva pelo imaginário, distante e fugidio Seringeti.

Vozes d’África, ó inaudíveis vozes d’África!

À frente da carroça-jaula marchava o garboso corcel enfeitado com plumas mil, numa miríade de cores em profusa confusão com a artista internacional que o cavalgava vestida em trajes sumários, procurando dar forma ao corpo já disforme e despertar a libido da plateia a ser conquistada para a bilheteria.

Bem, garboso corcel era o desejo do dono e anunciante do circo e a esperança da artista de despertar a libido, com o corpo severamente amarrotado, era coisa ainda mais complexa.

Athos, o cavalo de Andaluzia, já entrado nos 17, 18 anos, fora trocado por duas mulas com ciganos suspeitos, já lá se iam quatro ou cinco anos. Negócio realizado à noite, como só os ciganos sabem fazê-lo. Era dono e senhor absoluto de uma severa artrose no quarto traseiro, enfermidade que o obrigava a puxar de uma das patas. Um dos olhos era coberto por uma névoa branca que embaçava sua visão, obrigando-o a trotar de forma esquisita.

As orelhas, antes empinadas e atentas – já nem se lembrava de quando – eram sustentadas por uma armação colorida afivelada em sua cara com dois objetivos: um, disfarçar o olho praticamente cego; outro, dar sustentação a uma das orelhas transformada em acento circunflexo após um ferimento e o ataque das moscas varejeiras. Quando se fez a troca das mulas pelo cavalo à noite, tanto o olho cego, como a orelha “cabana” passaram despercebidos.

A artista internacional de duvidosas habilidades como equilibrista e, atriz ainda mais duvidosa, era aclamada pelo dono do circo e apresentador que, com seu megafone, roupas coloridas e estapafúrdias, rematadas por uma cartola verde e vermelha gritava a plenos pulmões: respeiiiiiiitááááááááelpúúúúblico, com vocês a artista internacional Ivaaaaaaaanna Rooooossss.......koff.

E, lá se ia Athos, encimado pela artista assentada de lado em seu lombo, coberto por quatro almofadas coloridas, andando lentamente. Nada de trotes, pois somente no picadeiro poderia ser levado a fazer algum esforço.

Um cachorro magro e de cor indefinida, com sarnas pelo corpo, acompanhava o desfile, muito embora olhasse furtivo e desconfiado para o leão que dormia. Resto de sofrimento, adotara a máxima: um olho no padre, outro na missa; um olho no gato, outro no peixe.

Ivana Roskoff, a artista internacional, nascida Raimunda da Anunciação, retirante dos sertões da Paraíba, conheceu o dono do circo há seis longos anos e com ele se amasiou. De vida dura e difícil, perambulando por bordéis, sem ninguém neste mundo de meu Deus, a lide circense surgiu como uma oportunidade, ainda que distante. Encantou-se com o nome e gostava que a chamassem de Ivana. Soubessem na sua terra natal e roeriam as unhas.

Às vezes, não muito raro, batia uma saudade danada da vida mundana, ainda que de muitos homens e escassos amores.

Sob as roupas tão sumárias quanto lhe era permitida pelos espartilhos e cintas que tentavam, infrutiferamente e apesar do esforço, dar ao corpo vencido e atropelado pelos tempos uma forma razoável, o resultado era desanimador.

A pintura extravagante das sobrancelhas contrastava com o vermelho vivo dos lábios. O rosto dispensava o “rouge” e assemelhados, pois o aperto das cintas deixava-a sem fôlego ruborizando naturalmente suas faces. O ajuste, para acomodar a barriga e as nádegas volumosas, provocava seguidos espasmos, levando-a a buscar o ar como um peixe fora d´água, abrindo e fechando a boca em movimentos rítmicos. De longe, poderia ser confundida com alguém respirando fundo, extasiada de pura emoção. Engano: o ar faltava-lhe aos pulmões levando-a, vez por outra, a arregalar os olhos.

Usava sapatilhas somente quando do desfile e nos momentos em que se apresentava no picadeiro, pois os joanetes a incomodavam estando calçada por muito tempo. Para amenizar, usava palmilhas de enchimento que acomodavam os joanetes e os pés dando-lhes firmeza para os números de equilibrista e alguns passos de dança. Coisa estropiada, mas vá lá que fosse algum tipo de dança.

E lá se foi o desfile rumo à pracinha do centro, sob um sol impiedoso e debaixo dos berros saídos do megafone anunciando o espetáculo para as vinte horas. Por onde passava o cortejo, alguns gatos pingados aplaudiam, porém sem muita emoção. Um comentário daqui, outro dali e parecia que o foco era a artista internacional.

Athos andando devagar; o feroz leão africano dormitando na carroça-jaula; o palhaço batendo bumbo e pratos, simultaneamente; o dono e diretor do circo a gritar descontrolado; sobrava a figura da artista, precariamente equilibrada no lombo de Athos, envolta em tules e tafetás como uma moderna esfinge com o corpo, que se pretendia exuberante, a ser decifrado.

Desde que não soltassem as amarras, prevaleceria o benefício da dúvida à luz do imponderável.

Era uma sexta-feira e o circo estava programado para dois espetáculos: um nesta sexta e outro no sábado.

O cortejo, sempre acompanhado pelo cachorro de cor indefinida e sarnento, deu a volta à pracinha e retornou pela rua em que viera rumo ao local onde acampado o circo. Antes do desfile, o mastro principal havia sido erguido, as lonas laterais já amarradas para evitar a entrada de intrusos sem bilhete faltando, apenas, a montagem da arquibancada, o que seria realizado tão logo do retorno do desfile, tal como foi. Não havia lona de cobertura e a torcida era para que não chovesse.

Ao lado da entrada foi montada uma guarita onde se lia, em letras irregulares e pintadas em vermelho: INGRSSOS. Assim mesmo, sem a letra “E”, por alguma razão esquecida. Os dois “SS” cobriam um mal disfarçado “Ç”, devidamente corrigido. Talvez, até mesmo por uma questão de estética.

Aquele dia foi movimentado para a pequena cidade. Além do circo com seu espetáculo anunciado, mesmo que gerando morna expectativa, o cinema anunciou a chegada do filme “Os Dez Mandamentos” em três partes, com exibição prevista para sexta, sábado e domingo. Seria devolvido na segunda, pelo ônibus da manhã. Os ingressos deveriam ser adquiridos para as três sessões do filme de uma só vez, o que elevava o preço para o dobro do valor cobrado para o espetáculo do circo. Contudo, assegurava a presença da plateia para o filme completo.

Na semana anterior, o assunto fora comentado na missa e o filme recomendado pelo pároco nos avisos finais. Tratava-se de um filme bíblico, pois! O padre falava cuspindo, o que levava o sacristão a ajudar na missa usando um saco plástico cortado pelo fundo e enfiado ao pescoço, à guisa de capa. Bebia bastante e, não raro, seu sermão enveredava por caminhos, ou descaminhos, bem distantes dos evangelhos. Num determinado domingo, durante a missa, cismou de descer a imagem da cruz e acomodá-la numa confortável cama improvisada junto ao altar. Chega de sofrimento, balbuciava.

As más línguas, e o que não faltavam por ali eram as más línguas, comentavam à boca pequena que ele já fora visto em atitude suspeita na cidade vizinha. E, não foi só por uma vez. Afirmavam, não sem fazer o sinal da cruz, que ele andava de caso com uma hóspede do bordel da Lurdes, o melhor entre os três da região. Costura de comadres, fuxico de beatas, inveja e maledicências. Nada mais do que isso.

Dezenove horas, luzes acesas, picadeiro iluminado e o camarim tomado por um frenesi intenso. O único espelho era disputado por Ivana, pelos palhaços e pelo dono do circo todos a cuidar de suas caracterizações. O camarim era um quadrado de dois por dois, com suas laterais cobertas com panos coloridos, tendo ao centro um espelho, uma pequena cômoda e uma cama de molas, esta bem antiga e enferrujada. Um balde com água atendia às necessidades manejadas por uma caneca que, algum dia num passado distante, teria sido lata de alguma coisa. Ervilhas, quem sabe.

Corre-corre, apronta daqui, ajeita dali, o “colant” de Ivana não comportava os espartilhos e as cintas, até porque sobrepostas, e foram necessários o dono e o palhaço para ajustá-la dentro da limitada veste, após imobilizá-la na cama. Aperta, solta, amarra, embute gorduras e, finalmente, vermelha como um tomate e respirando com dificuldade, olhos arregalados, a internacional Ivana Roskoff estava no ponto.

Ou quase. Faltava a palmilha da sapatilha para a acomodação dos joanetes, misteriosamente desaparecida. Somente um pé foi encontrado.

O relógio anda, o tempo passa e, aboletado num pequeno banco dentro da guarita, já todo paramentado, o dono aguardava ansioso o fluxo do respeitável público. Quinze minutos, pouco distante das 20 horas, e nada. De repente, uma sombra. Passa um bêbado destilando impropérios, tropeçando em si mesmo e desaparece nas brumas de sua solidão. Passou pelo circo como se não existissem: ele e o circo.

Vinte horas, vinte e quinze, vinte e meia e nada. Sequer uma alma. O relógio atropela o tempo. Vinte e uma e trinta. Deixa o interior da guarita, arrasta o banco para fora na entrada do circo, acomoda-se e cabisbaixo permite que o pranto o invada sem respeitar fronteiras. O soluço vem lento e macio. Machuca.

Acomodado a seus pés, o cão magro de cor indefinida e sarnento traz na boca a palmilha de ajuste dos joanetes de Raimunda da Anunciação que, tempos depois, foi vista perambulando pelos bordéis com o nome de Ivana Roskoff.

Dizem que quem viu foi o padre.

Bellozi

27/01/15

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bellozi
Enviado por bellozi em 29/01/2015
Reeditado em 29/01/2015
Código do texto: T5118376
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