Quase padres
Cedo tive de assumir responsabilidade de gente grande. Órfão de pai aos oito anos, era eu quem ajudava minha mãe na manutenção da casa, vendendo os bolinhos, que ela preparava desde às cinco da manhã, na feira do bairro. Tinha dois irmãos menores. Estudei atravessando todas as marés e pororocas que gente na minha situação tem de vencer.
Concluí a universidade em Belém, trabalhando como bolsista da própria instituição. Senti necessidade, por conta do mundo do trabalho, de posgraduar-me num centro mais avançado. Eu e mais dois colegas, ambos amigos de faculdade. Precisava garantir um futuro melhor a minha mãe e a meus irmãos. Juntamos nossas escassas economias e fomos pra São Paulo, onde cada um de nós já estava aprovado e matriculado no curso desejado. Foram três dias de viagem muito cansativa. E nossas finanças minguaram tanto que não sobrou dinheiro suficiente para alugarmos um quartinho que fosse. Sentados no Largo São Bento, tateamos uma solução para não dormirmos pelos viadutos. Éramos dois católicos e um nascido em lar evangélico.
_ Brito, será que na sua igreja o pastor não nos acolheria por uns dias até conseguirmos emprego? _ perguntei.
_ É, Brito, a gente se identifica todos como evangélicos! Não é, Anselmo? _ reforçou Luiz Carlos.
_ É, pode ser _ sussurrou Brito.
Chegamos à primeira igreja à vista e expusemos nossa situação, alegando sermos também estudantes. O pastor negou acolhida, justificada pela violência presente, que não permitia confiar em estranhos sem carta de recomendação da igreja de origem.
Após algumas reflexões, decidimos apelar para a hospitalidade de uma igreja católica. O padre não pôde nos acolher sem a autorização de seu superior. A primeira noite dormimos na rua, sob muito pressão e medo de assaltos, quebramos o gelo quebrando a resistência do evangélico em aprender a rezar as ladainhas de nossa fé: a Ave-maria, Santa-maria, o Creio em Deus Pai e a fazer o sinal da cruz. O fato de ele saber rezar o Pai Nosso facilitou bastante nosso trabalho, meu e de Luiz Carlos. Uma exigência do vigário que nos atendeu foi que todos fôssemos católicos.
No dia seguinte ele nos daria uma resposta definitiva. Voltamos cedinho, lá lavando o rosto e a boca. O vigário pediu-nos para esperar pelo superior numa saleta discreta. Este, com uma voz grave e pausada, quis saber nossa trajetória religiosa, isto é, se éramos todos batizados, crismados e freqüentadores assíduos das missas de nossa cidade. Luiz Carlos, que tinha sido coroinha na adolescência, foi nossa salvação. Dava e nos induzia a dar sempre repostas convincentes.
O padre nos aceitou com a condição de que jamais poderíamos pensar em levar uma vida mundana. Teríamos severos hábitos cristãos daquele dia em diante. Antes, porém, tivemos de provar que estávamos matriculados nos respectivos cursos.
Em casa, ultimamente, eu levantava às sete horas e tinha alguma folga, quando não estava estudando ou trabalhando. No novo lar, levantávamos aos primeiros badalos do sino. Tínhamos de participar de todas as missas. A primeira era às cinco da manhã. Só saíamos para a universidade. Aos sábados e domingos era reclusão total. Vivíamos como homens de Deus. Nada de orgias, bebedices ou filmes pornôs. Por outro lado, tínhamos o conforto de uma boa cama e mesa. A alimentação era espetacular e as faxineiras da igreja lavavam e passavam nossas roupas.
Cerca de seis meses depois, cada um já em emprego razoável, deixamos a severa mordomia e fomos morar em um pequeno, mas decente, apartamento, bem mais próximo à universidade, até a defesa de nosso trabalho final. Mas sempre aos domingos cultivamos o hábito de almoçar com nossos anfitriões. Desenvolveu-se entre nós um certo laço de família. Os padres tornaram-se uma espécie de paizão. Quando tivemos a oportunidade de revelar nossas malandras e desesperadas mentiras, estes riram à beça da situação hilária que nos impetraram. E Brito nunca largou sua religião, apenas conheceu mais uma.