638-QUEM PAGA A INFLAÇÃO-Memórias de meu pai

A relação de meu pai com o dinheiro era muito especial, conforme já mencionei em conto anterior (*). Apesar de não ser entendido em economia, tinha um senso muito acurado na administração de seus ganhos como marceneiro e entalhador.

Seus estudos foram poucos. Além do curso primário, frequentou o Seminário Diocesano de Guaxupé por alguns anos, não tendo sido ordenado padre. Seu respeito com o dinheiro, entretanto, chegava a ser quase religioso.

E quando começou, na década de 1950, falar-se em inflação, ele já tinha uma explicação para o que estava acontecendo.

— Um país nada mais é do que a projeção de uma família, ele dizia. — Um chefe de família tem de viver com o que ganha. E ainda economizar alguma coisa, por pouco que seja, a fim de prevenir-se para o futuro. Se precisa de mais dinheiro para viver, tem de aumentar a renda, trabalhar mais, arranjar outro serviço que lhe dê mais renda. Não adianta pedir emprestado.

Quando o governo de Juscelino Kubitschek começou a emitir dinheiro para construir Brasília, o custo de vida começou a subir rapidamente, e essa alta passou a ser chamada inflação.

Meu pai dava sua explicação:

— Esse dinheiro “a mais” que o governo emite é um crime contra o povo. Para cada cruzeiro emitido, as coisas (e o trabalho) se desvalorizam pela metade. É como se eu ganhasse 100 cruzeiros e fosse à venda, ao açougue, à farmácia, ao cinema, ao futebol, e entregasse “vales” no valor de 200 cruzeiros. Como irei pagar a diferença entre o que ganho e o que estou gastando? Se eu não aumentar minha riqueza, isto é, se eu não trabalhar mais, para ganhar mais 100 cruzeiros, não vou ter como pagar. Posso até conseguir do banco um empréstimo de 100, para quitar a dívida com os fornecedores, mais aí é a coisa fica ruim. Pois o banco irá me cobrar juros, e os 100 iniciais vão se transformar, com o passar do tempo, em 110, 120, 130 e eu vou afundando cada vez mais.

Depois de dar um sorriso enigmático, como se estivesse contente com a própria explicação, prosseguia:

— Agora, pense no que o governo está fazendo. Está emitindo “vales” que jamais poderá pagar. Não está criando riquezas, pois Brasília não vai produzir nada. É dinheiro fica enterrado, imobilizado. Nós somos obrigados a aceitar os “vales” do governo. E como são muitos, mas muitíssimos vales, elas vão valendo cada vez menos.

— Então não adianta nada essa movimentação para construir Brasília? — perguntava algum ouvinte. – Os nordestinos que conseguem trabalho, as empresas de cimento de ferro, de material de construção, os caminhões que levam os materiais para Brasília, isto tudo não significa nada?

— Eis o que penso o que significa: o governo está gastando o que não tem. Emitindo vales, dinheiro que não representa criação de riqueza. Este governo não vai pagar estes vales, nem nenhum outro governo. A moeda vai se tornando cada vez mais fraca, cada vez valendo menos. Estão chamando isto de inflação. Futuramente, o dinheiro vai valer tão pouco, que terá que ser substituído por outros vales. E isto tudo tem um custo: o povo trabalha cada vez mais para ganhar cada vez menos.

E concluía, agora sério, pois aquilo tudo que dizia tinha o valor de uma profecia:

— E nós é que pagamos o pato.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 19 de novembro de 2010

Conto # 638 da SÉRIE 1OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 27/01/2015
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