O mendigo do centro

Acordei hoje, com vontade de fazer algo diferente, poderia ser qualquer coisa e em qualquer lugar, mas que não fosse aqui neste quarto úmido, onde o silêncio largo entope todo o cômodo , estreitando os cantos da solidão, e me deixando estático o dia todo. Os últimos dias que passei neste quarto, eu percebi o que a loucura faz, e realmente acreditei , que alguém um dia pode enlouquecer de fato, pois sempre desacreditei ,quando via alguém gritando no meio dos carros, todo mijado e cagado, eu sempre passei de longe observando, aquelas pessoas e a história, por trás daqueles olhares tão voluptuosos , mirando cada passo do centro da cidade, cada segundo das pessoas , pra lá e pra cá, com uma sombria e densa personalidade de louco, que de vez em quando , há filosofia , mostrada em corpos moribundos, despercebidos na calçada, ou naquela praça.

Lembro-me de um dia de sol intenso, estava desempregado e a caminho do centro, esperançoso e crente , de que iria arrumar um trabalho naquele dia, peguei o ônibus Belmonte, ás 10 da manhã no ponto, á duas ruas de casa, e me sentei nos fundos do lado da janela, a essa hora a maioria das pessoas já estavam no trabalho, e eu adorava aquele espaço vazio nos fundos, e durante a viagem até o centro, 4 ou 5 pessoas entravam , e o cobrador do ônibus era sempre mais solto, conversava com o motorista , que buzinava a cada moça volumosa que passava. Cheguei no centro e desci, no calçadão de Osasco, estava me sentindo ótimo , pois não havia passado mal no ônibus, um frequente transtorno que já superava há algum tempo, então segui até a rua dos comércios, uma espécie de calçadão , uma feira gigante e cheia de gente, onde não passava carros, e tinha lojas dos dois lados, sempre ando por lá ,com uma mochila , com alguns curriculum , caso avistasse alguma placa, solicitando ajudante, mas nesse dia estava de cão, não havia nenhuma placa , mas mesmo assim , ainda deixava algum , em alguma loja menos frequentada. Andei por todo aquele calçadão, tinha no bolso duas moedas de 50 centavos, dava para comprar dois cigarros soltos, comprei dois derby azul e sentei numa rua fora dos comércios, ascendi um com um isqueiro emprestado duma moça que passou:

-Com licença moça, me empresta o isqueiro?

ela estava passando e fumando um cigarro de filtro branco e fino, achei que ela teria fogo

- Estou sem isqueiro, mas pode ascender no meu cigarro.

ela estendeu a mão com o cigarro, quase no fim, e eu ascendi o meu, e ela me olhava com medo, e estava bem vestida, como madames ou patroas

- Obrigado

voltei a sentar, enquanto apressadamente, aquela moça sumiu naquele asfalto, a sua imagem parecia que dançava com o turvo do sol , fazendo miragem no horizonte.

Fiquei sentado lá e ascendi um outro cigarro, antes que ficasse sem fogo, quando um mendigo se aproximou e sentou do meu lado, estava incrivelmente fedido, daqueles que por onde passa deixa a merda pairada no ar, eu não disse nada apenas o olhei disfarçadamente, ele me olhou e olhou meu cigarro furtivamente, e eu simplesmente dei e sai dali, o desgraçado pegou o cigarro e o apagou na água do meio fio, e deu rizada e começou a aplaudir, carregava consigo um saco preto de recicláveis, e um cão o acompanhava, o cachorro com a língua pra fora , e o mendigo tirando tudo de dentro daquele saco, esparramou tudo na calçada, e eu do outro lado da rua na sombra, apenas observando aquele cara, tentando imaginar como foi, que ele se tornou naquilo, uma paisagem numa selva de pedra, que todo mundo passa e ninguém nota, ninguém ajuda e nem se importa em saber como, e por onde uma pessoa dessa, se enfiou numa vida tão judiada daquela, mas aquele cara estava tão louco que tive medo de me aproximar , deve ser por isso que eles acabam tão sozinhos assim.

Resolvi dar mais uma caminhada pelo centro, entrei numa loja de cosméticos, que ambiente era aquele, moças lindas e bem vestidas e cheirosas, rapazes fortes e de boa lábia, engraçado que no segundo anterior , estava num mundo completamente diferente, e agora sinto o cheiro que todos queriam sentir, naquele cabelo ruivo e bem escovado, na sessão de esmaltes, se nota de longe que tipo de pessoa é, bem vaidosa , de vida fácil, onde entra é bem recebida, é elogiada a cada segundo por um vadio de plantão, então resolvi ficar só na espreita, do outro lado na sessão de shampoo, tinha entrado lá para me refrescar do calor, naquele ar condicionado frio, a maioria das pessoas fazem isso mas não admitem ,ficam apenas caroçando o recinto, enquanto esfria a moleira, e esse era o meu caso, mas permaneci um tempo mais, olhando aquela moça, a vi pagar a conta e atender o celular , falando com o marido, "desgraçado sortudo" imaginei, depois sai de lá.

Estava sem dinheiro para voltar , ou para ir pra qualquer lugar de ônibus, me senti miserável e com fome, retornei até a rua do mendigo, e lá estava ele gritando e chorando, mas de joelhos no meio da rua ,fiquei espantado com aquilo então cheguei mais perto, seu cachorro havia sido atropelado, sua cabeça estava aberta e ainda pulsava vida nos pedaços, o mendigo desesperado dizendo " meu amigo foi embora" chorando sem parar, chegava a soluçar , fiquei comovido com aquilo, mas não sabia o que fazer naquela situação, as pessoas passavam de carro buzinando , estressadas , não se importavam com aquela dor, mas eu sim, de um modo peculiar , conversei com o mendigo, e o retirei do meio da rua, levando para calçada, e logo ele se acalmou e começou a ser louco novamente.

Naquele dia eu comecei a enxergar certas coisas , de um modo diferente, passei a me colocar no lugar das pessoas, para compreende-las melhor, mas não no lugar de qualquer pessoa, e sim de pessoas como aquela, com uma alma ainda viva, com o dom de chorar por algo ou alguém , esses são os verdadeiros normais no mundo , pois ainda sentem algo , mesmo com aquela dose de loucura, já outros tantos por ai de terno e gravata, assinam guerras, e são verdadeiros sádicos , idolatrados, por gente que se julga normal, isso sim é insanidade.

Robert Ramos
Enviado por Robert Ramos em 16/01/2015
Código do texto: T5103672
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