O SANGRADOURO
O SANGRADOURO
Os Homens corriam como loucos de lado para outro em busca de algum pertence que não sabem qual. Do céu, promessas de muitos raios, nuvens escuras agitadas se movendo desordenadamente e se concentrando principalmente no horizonte. Ali, ainda não tinha caído uma gota de água se quer, e o chão estava esturricado de sêco. A Paisagem apresentava-se como um quadro verdejante apenas ali, detrás do açude da quixabeira da Tia Bárbara.
Na vazante o batateiral, o milharal e o mandiocal, de um verdor que não disfarçava raios de prata não menos ameaçadores que as águas da enchente de 1960. Os preás corriam espavoridos buscando refúgio no morro próximo ao Santo Amaro. Ali mesmo, próximo, Maria Augusta, um louco travestido de mulher, um lunático que parecia profetizar. Dali, de seu trono, uma cabana muito rústica debaixo de uma velha quixabeira próxima à cachoeira do Cantagalo cujas águas se avolumavam, contemplava o desespero dos sãos e, às vezes, resmungava.
__ ainda dizem que sou louco, não me quiseram ouvir!
No ancoradouro, Luís de Ananias desamarrava a todo instante as canoas e as amarrava logo mais acima, para não serem submergidas.
Um jovem pescador chorava desconsoladamente e exclamava desesperadamente: “meu Deus, meu Deus! A água levou minha canoa! E agora como vou tirar o sustento de minha família, mulher e filhos. Ajudem-me pelo amor de Deus!”
De repente vislumbram silhuetas, saltitando por entre o mandiocal. É Ildefonso e Assis que vem gritando a todo pulmões, bem alto, anunciando o que todos já previam e temiam.
__ Papai, papai, papai! vem aí muita água!
— Seu Biiida! seu Biiida! o paredão da quixabeira da Salina arrebentou!
— Ildefonso meu filho, você retirou todos os animais do vale?
— Sim, papai! Tirei o jegue grande, toquei o zambeta lá pro alto. Carimã tá de bezerro e ficou na parte alta presa no curral. Lá fora num tem oveia, todas foi tombem pro alto. E as cabras toquei pras caieiras e tão todas em lugar siguro.
Falou o rapazola José Cordeiro.
__ É fantástico, heim pessoal! Acho que o açude grande deve aguentar toda essa água dos dois lados, esse paredão é de puro barro e pedra.
Porém, ainda escorrem águas cristalinas entre as pedras do sangradouro, que deverão se encontrar com as do rio, para se unirem num casamento devastador. Apesar do esforço humano para conter o avanço das águas, acabaram desistindo e elas agora, obedecendo ao impulso natural em seu rumo, engoliu dois paredões, afogou a plantação e seguiu seu curso para o mar.
Agora, cançados, estão assentados sobre as pedras que serviram de banco, restava-lhes contemplar a cascata que descia pelo sangradouro, cristalinas como vidro.
Já não restava mais nada a fazer contra a descomunal enchente.
___ Compadre Zuza me responda uma coisa.
— Quem já não teve alguma história romântica iniciada por aqui mesmo neste sangradouro! Falou Geraldo Albertino.
— É verdade compadre! E você se lembra de alguma história, compadre Geraldo Albertino?
— Sim, compadre, eu me lembro sim, de uma! Bem, vou contar é estória de Débora e Dira, que considerando os padrões rústicos do povo daqui da região, elas eram consideradas bonitas.
Dira, como de costume, toda faceira, foi mais uma vez apanhar água no sangradouro do açude de Canabrava. Ao aproximar-se deu de cara com um jovem pescador abelhudo, Cornélio, que parecia já está a sua espera. Contemplavam as águas correntes e claras do sangradouro. Poucas palavras proferidas baixinho, quase sussurrando, que eram denunciadas pelos olhares que se cruzavam rapidamente, numa flamejante e sensual.
Suas mãos, com gestos nervosos, não ousavam, mas já estavam cheias de cobiça e adultério
Eram amancebadas com Tijaia, homem calmo que falava pouco e chegou ali vindo do agreste, não se sabe, contudo, de qual cidade procediam.
___ O amor proibido nascia à beira do sangradouro. Olharam para os lados, certificando-se de que ninguém os estava vendo ou ouvindo. De vez por outra Cornélio pegava o espelho de bolso na algibeira, olhava o topete de pixainho e se achava irresistível. Dira era a mais vaidosa das irmãs e estava faceira e envaidecida e mais do que nunca se sentindo feliz naquele recôndito de pescadores. Rendia-se, aos encantos ou à ousadia do negrinho Cornélio.
O suave barulho das águas os excitava e os inspirava na troca de olhares cada vez mais profundos. Suas mãos, atrevidamente, agora, se tocavam num lance quase natural, belicosamente, carregadas de paixão e lascívia. Quando ela entrou na água até os joelhos, encheu seu pote, Cornélio adiantou-se para ajudá-la a suspender até a sua cabeça. Ele vestia uma calça de algodão frouxa, roçando os corpos ao elevar o pote, ela pode notar a sua excitação e seu rosto enrubesceu.
Não ousaram ir além e se despediram com os olhares. Já estavam ligados pelos invisíveis laços da sedução. Ao chegar ao passadouro da cerca que separa a área de plantio, dá uma ligeira olhadela para trás. Agora é só uma questão de tempo e esse tempo veio como um furacão. Turbulento como as águas da cachoeira sem remanso, com malícia e com dolo.
O coitado do Tijaia levava sua vida entre a pescaria, o roçado e o lar, onde suas duas mulheres, as duas irmãs, dividiam com ele a cama de varas e o colchão de palhas mesmo assim coberta de carinho. A velha baraúna era testemunha muda da secreta história de amor de Dira e Cornélio.
Certo dia, sua irmã entra no assunto:
Algo muito estranho está acontecendo com você, Dira. Tenho notado que você já não reclama mais o seu direito de se deitar com Tijaia.
Ao que sua irmã sempre tinha uma boa desculpa.
__ É que eu não tenho andado lá muito bem e te sou agradecida por estar me ajudando.
Débora por sua vez perguntava-se, o que será que está acontecendo com a Dira. Está sempre de bom humor e e me parece tão feliz.
Outro dia, Sr Júlio era do Cachauí, mas estava morando em Canabrava, voltava mais cedo de sua roça na Ilha dos Cajueiros, ao se aproximar do sangradouro viu os amantes no meio do mandiocal. Não sendo percebido manteve o anonimato e furtivamente pode presenciar a mais desavergonhada e exuberante cena de amor e adultério. Resolveu que também poderia se aproveitar do caso chantageando a jovem Dira, uma vez que as mesmas não poderiam dar alarde.
— Ou você se deita um pouquinho só comigo, também, ou contarei tudo para seu marido!
Ela não teve saída a não ser ceder àquela chantagem, ficando refém do oportunista. Procurou outro cantinho no meio do mandiocal e quando seu primeiro amante, o Cornélio, se retirava, ela apresentava uma desculpa qualquer e se demorava um pouco mais, mudava de local e ali se deitava com o Júlio do Cachauí.
Dira, coitada, não esperava, mas se achou grávida, e sua irmã Débora desconfiou. Sua irmã se manteve silente não expôs sua desconfiança, até que barriga da mesma cresceu daí não teve jeito. Amancebada que era não chamou atenção nem do maridão nem de ninguém. Tudo parecia natural e mesmo com barriga grande continuou com os encontros. Quando Elvira, uma velha parteira, foi chamada realizou o parto em sua casa, a criança nasceu perfeita e puseram o nome de Thaíra, era uma espécie de:( Ticjaia + Dira).
Quando a criança nasceu moreninha, em nada eparecia com o pescador que era galego. Tijaia ficou com pulga atrás da orelha, ou melhor, um batalhão de pulgas. Aceitou, mas com enorme coceira na testa, (quero dizer nas orelhas). Muitas vezes tentou buscar na lembrança algum parente que pudesse ter pele escura e quanto mais buscava não tinha jeito, só lhe vinham às lembranças pessoas claras, avós, bisavós, tataravôs, pentavós etc..etc.
Tudo voltou ao normal no povoado, todos ficaram sabendo do nascimento do filho de Dira, e não economizaram um sorriso hirônico. Os mais íntimos e gozadores de vez por outra falavam “ É farinha do mesmo saco, mas a mandioca pode ser outra”. Algumas senhoras chegaram até a achar o menino parecido de mais com Cornélio, porém de nada suspeitavam, portanto, tudo poderia ser uma coincidência.
Era véspera de Natal, em cada casa do povoado logo, à entrada, havia um presépio enfeitado. Na casa de Débora e Dira, era a única exceção, ali não tinha um presépio.
Tijaia chegou mais cedo naquele dia, tinha vindo da pescaria, cabisbaixo encontrou Débora à porta de quem recebeu um beijo com todo carinho. Antes que ele perguntasse, adiantando-se, disse que a Dira tinha ido buscar água no sangradouro. Apesar de Dira não estar em casa ele não esboçou curiosidade, nem perguntou por ela, queria dormir cedo, estava cansado. Entrou em seu quarto e deitou-se, não demorou, adormeceu.
Mais tarde quando Dira chegou a irmã notou que ela estava toda marcada pelo pescoço e começou uma breve discussão. Não podiam falar alto para não acordar o marido.
Não imaginavam que Tijaia tivesse acordado e escutou a parte mais grave da conversa.
Chegou aos ouvidos de Tijaia como se tivesse tocado um despertador. Empunhando o velho revólver deu um salto da cama, foi até onde elas estavam e sem esforço algum viu as marcas de chupada no pescoço e nos ombros de Dira. Foi logo perguntando, de estalo, de maneira que deixou ambas muito assustadas.
— O que foi isso em seu pescoço sua cabrita sem-vergonha, desgraçada, safada? Responda-me logo de uma vez ou te mato agora, mesmo.
A coitada ainda transtornada do susto, sem poder falar apenas arregalou os olhos com terrível espanto, diante do inquestionável fato.
— O que foi isso sua cabra velha desgraçada, fale logo ou te mato agora mesmo junto com essa peste de crioulo, que me deste por filho?
Ela que havia quebrado propositadamente o pote que levara para apanhar água.
Balbuciou quase sussurrando.
— Eu caí quebrando o pote, e seus cacos machucaram o meu pescoço.
— Sua cabrita, mentirosa de uma figa! Você quer me dizer agora que pote tem dentes e se deitou com você esse tempo todo no meio do mandiocal. Se você quer viver me diga com quem mais se deitou, um por um, me diga e eu te deixo viver! Vamos diga, diga, diga!
Ao que ela morrendo de medo cabeça baixa, começou a contar tudo direitinho sem esconder sua fraqueza e seu amor por Cornélio mesmo diante da ameaça de morte.
A Irmã pedia calma, calma Tijaia. Mas o homem espumando de raiva que nem um touro bravo de arena parecia nem ouvi-la. Uma desgraça estava prestes a acontecer. A beira da loucura esgoelava, esganava a amedrontada a envergonhada Dira que soluçava sem parar.
— Calma Tijaia para tudo tem uma explicação, teu ciúme te faz perder a razão, tu já tens a mim, não te sirvo bem?
Ao que o furioso pescador respondia.
— A Perder o quê essa razão eu não perco nem aqui nem no inferno, ta bom? É por isso que estive notando a ausência dessa vagabunda no seu dia de se deitar comigo. Você é que tomava o lugar dela e eu nem desconfiava de nada. Diga-me se você também estava acoitando essa desavergonhada ou se vocês estavam combinadas, que eu mato logo as duas, agora mesmo.
E empunhando a velha arma tudo estava por um triz.
Quando a noite caiu, o marido traído saiu desesperado deixando as duas irmãs em casa ainda sem saber que destino daria para elas. Já era alta noite quando se ouvem tiros lá para bandas da casa do Cornélio, depois lá para os lados do alto do cruzeiro de Canabrava, perto da Igrejinha onde morava o Júlio. Pela manhã escutava-se o choro de desespero na casa de Julio e na casa de Cornélio. Na casa de Tijaia não havia uma alma se quer, fugiu tão misteriosamente quanto havia chegado.
Passado alguns meses, Tijaia sabendo que não matara ninguém, deu notícias,sinal de vida e se lamentava o ocorrido, por ter agido num momento de descontrole. Dizem que foi às escondida na calada da noite e se despediu sem a orientação e conselhos de Maria Augusta.
Compreendeu o grande amor, que a tudo vence, na fraqueza de Dira. Assim a liberou para ir cuidar do filho juntamente com Cornélio por quem nutria verdadeiro amor. Como ele não morreu com os tiros que levou a recebeu com festa a amante e vivem felizes até os dias hoje, lá no Arnipó. O Júlio, após sair do hospital DR José Alventino Lima, ficou tão assombrado que resolveu voltar para o Cachauí. Tijaia disse que só se arrepende de uma coisa: não ter acabado de vez com o chantagista Júlio, que tanto fez sofrer uma de suas mulheres.