PRIVAÇÕES
Quando jovem, os pés serviam como locomotivas, o coração como vagão que carregava os mais intensos desejos dos amores proibidos.
Freada por uma força oposta, sempre arrumava um Jeito de desprender da alavanca que prendia sua força motriz.
Há pouco tempo, os pés que conduziram-na aos mais diferentes e surpreendentes lugares, mais pareciam âncora, submetendo-a: Á prisão, ao carcere, á loucura.
Embora lúcida, passava o dia com o rosto enquadrado á janela: do quarto, da sala, ou de outro cômodo qualquer.
Via a vida saindo aos poucos de si; As amigas de infância, uma a uma era levada a contra gosto pela maldita.
Durante o dia uma acompanhante fazia os serviços domésticos; Á noite uma vizinha se encarregava de dá uma olhadinha; Os filhos a visitava com frequência. Não fosse as privações, nem carinho faltava. Bastava uma visita ou telefonema, e lá estava ela se queixando de excesso de cuidado. A proibição maior veio quando a idosa descuidou, e a panela quente foi ao chão. A partir daí foi tolida de fazer atividades simples, como: Usar o fogão, limpar a geladeira, varrer a casa...
se pelo menos os pés desinchassem, ela poderia passar horas no quintal cuidando das plantas como sempre fazia.
Mas certo dia, aquela senhora de 80 anos de idade acordou danada do juízo, sentou-se em direção a porta dos fundos, avistou o jardim, olhou para os pés, e já foi descendo o batente rumo ao quintal recém abandonado, quando recebeu ordem para retornar. A idosa tomou áquelas palavras e a fez de alavanca, semelhante aquela que a prendia na mocidade quando era proibida pela mãe de sair, virou-se, e soltou:
"A partir de hoje, se a maldita quizer me levar, que me leve, Mas não vou mais permitir que a vida saia aos poucos de mim antes mesmo de a morte chegar". Apoiou-se e saltou.