Fugidelas de Vicente

O Vicente Chaves não era de dar ouvidos a ninguém. Mas na sua quase completa surdez, prestava uma atenção danada naqueles que se dignavam ser seus interlocutores. Vinha - escondido e ressabiado - visitar a ex-namorada, Rita e, sem responder ao que lhe era perguntado, falava, tomava o café que lhe era servido com biscoito ou bolo.

E, mais um dedo de prosa, se ia. Não sem perguntar se não havia guarda-chuva pra ser consertado ou asa de caneca pra ser reatachada. Mas só de latão, fazia questão, pois a Ana, a mulher, não deixava ele mexer com solda não. Precaução. Tinha medo que aquele porão onde ele ficava socado fosse pelos ares. E também, tanto o ferro quanto o material de solda era caro.

Rita, é que paciente, depois da partida do ex-pretendente, fazia menção ao namoro de muitas décadas passadas. Mas a moça de Donana, aquela atrevida Ana, lhe arrebatara o troféu. Não se gostavam, e por alguma razã o convi(n)cente. Mas já andava ficando decadente o próprio Vicente.

A surdez, no entanto, era uma bonança na tempestade, pois o desobrigava de ouvir os destemperos da mulher, e a acreditar que outra ex-pretendida, ainda o quer. E vai ver que não era só Rita, a razão de visita - e o que a Ana tanto irrita, que sopita.

Na juventude ele não chegara a ser um Apolo, mas era tratável, de boa aparência e sabia agradar as moças. Agradar e respeitar. Vai ver que em demasia. Mas que outra coisa faria?

Teve filhos com Ana, já crescidos, nutridos, e que iam se casando, até o casarão assoalhado ir ficando com ar de quase abandonado. Mas não esperaram muito mais.

Passaram a propriedade nos cobres - que tinha pelo menos um bom quintal, e se mandaram pra capital, pra viver aos cuidados da filha Maria, ainda que na periferia.

E durou pouco o encanto do Vicente com as novidades da capital. Animado por galopante ansiedade seu gosto voluptuoso era tomar o lotação, que parava ao simples sinal de mão. Porém, e sem se dar conta de que a via tinha duas mãos, adiantou-se para parar o que vinha, e ab-surdo, foi colhido pelo que ia. Ficou. Guardado na memória e o

resto, se escrever, é história. De alguma glória.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 11/01/2015
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