Achaque do jogo

Dona Vânia decidiu cometer um crime contra o tédio que a assolava. Iniciou seu delito num assalto às gavetas da escrivaninha, donde adquiriu capital e munição: uma caneta azul, a qual falhava mais que escrevia; um bloquinho de papel pardo; uma pequena bolsa de pratinhas.

Fez uma lista completa do que precisava, numa caligrafia meticulosamente graciosa, embora pouco rebuscada. Perder tempo é ganhar! Em seguida, rumou a seu boudoir para pentear os cabelos, que deveriam ser brancos, mas eram tingidos de um ruivo discreto. Entrou num vestidinho florido, daqueles que se usava no tempo de sua mocidade, coloriu as bochechinhas pálidas com uma gotinha de ruge e perfumou-se com seu perfume habitual, o mesmo desde um bom tempo.

Socou, delicadamente, umas notas em meio às moedas, bagunçando um pouco o conteúdo da bolsinha. Despediu-se do apartamento, por um instante, e deixou a maçaneta bêbada ao sair. No elevador, checava se trazia o necessário consigo.

O elevador despencava... Mas seu destino estava a mil anos-luz. A eternidade é suportável, contanto que se tenha companhia. Se não a tiver, a eternidade se torna um único ponto no espaço; e ai de quem duvidar da infinidade deste ponto.

Quando enfim Vânia estava no T, ela viu que, de dentro de seu bloquinho, uma folhinha caíra durante o trajeto vertical. Catou-a no chão – sem nenhuma dificuldade, era uma velha dotada de ossos de aço – e leu o que estava escrito: "feliz aniversário, que nunca lhe falte um bom jogador". Imediatamente ela se lembrou do viciado em xadrez que havia conhecido há uns 10 anos, Reginaldo Coelho, um veterinário da igreja que a senhora costumava ir orar. Ele havia a dado, lá por essas épocas, um tabuleiro de xadrez, daqueles artesanais que, de tão detalhados, cegam os minimalistas.

Dona Vânia nem gostava de xadrez, jogava com Reginaldo só para passar o tempo e desperdiçar intelecto em diálogos fúteis.

Nesse meio tempo de recordações, a senhora já estava na rua. Conhecia Uberlândia bem (ao menos era doutora nas rotas que interligavam sua casa à feira, ao mercado e à farmácia) e, assim, podia dar-se ao luxo de andar pela calçada em devaneios, distraída. Assim, devido à sua notável capacidade de brisar, Vânia iniciou um raciocínio forçado.

O mundo é um tabuleiro de xadrez, isso não se discute. De um lado, o bem e, do outro, o mal. Deus movia as pedras brancas e o diabo movia as pretas. Tudo certo.

Nas ruas, via uma gama de peões, ralando para ganhar seu sustento. Todos os dias, uma rotina exaustiva, seja estando na classe operária e sendo alvo da exploração que Marx tanto falava, seja se tornando escravo de si mesmo. Os peões dão os menores passos, os menores avanços. Estão em maioria, mas se a jogada der em merda, são os primeiros a ruírem.

Faltavam torres... "Onde estão minhas torres?". As torres que guardam, que fazem proteção! As torres que sabem atacar e resistir; ser tiro e ser muralha. As torres que não pensam muito, apenas fazem. Mas fazem, ainda bem! Mas para onde foram? Será que estão de patrulha? Será que se esqueceram de todos? Deus abençoe quem vive em casa, sem muro e sem cerca.

E complementavam às torres meninos. Novos, viçosos e plenos de esperança, de planos para o futuro. Meninos esses que agora se submeteriam à força do movimento em L! Sim, o cavalo salta sobre qualquer peça, qualquer vontade. Não que seja ruim, uma dose de autoritarismo não faz mal a ninguém. E, além disso, chovem peões que querem ser cavalos. Resultado: dessa enxurrada, o que não evapora faz rio!

E assim Dona Vânia fazia o relógio correr menos lerdamente! Seus pensamentos foram, convenientemente, interrompidos para o badalar dos sinos da igreja.

Então, lembrou-se do bispo. Esguio, sagaz, perspicaz. Anda pelas diagonais desse tabuleiro. Ora é um poço de bondade, ora desata ao preconceito. Ora é símbolo religioso, ora quer fazer a laicidade estatal de refém. Pregam o amor de Deus, pregam o amor dos céus, mas não aceitam o amor que está aqui na terra. Não aceitam a mudança, não aceitam a clareza, não aceitam os fatos. Não querem mais nada sincrético, nada que apodreça sua pureza. Portas e janelas fechadas: um dia alguém as arromba.

Então o poderio, o maximum, o casal real! O presidente do Brasil? Na-não... O presidente dos Estados Unidos? Chega perto, mas não, não é o líder dos yankees. É, sem sombra de dúvida, aquele que é Lincoln lá e beija-flor aqui. Aquele que move estatísticas todos os anos, todos os dias. Dinheiro: ode ao sucesso, motor de rendimento cem por cento, que existe embaixo da astenosfera e garante a rotação da Terra.

Assim vinham disputas sendo travadas, século a século! É samba maniqueísta. Por uns dias os brancos vencem, por outros os pretos, mas, não importa, sempre após uma partida, reorganizam as peças e recomeçam o jogo, sem cessar-fogo. A consoada nunca chega. E, óbvio, os jogadores não são os melhores exemplos de ética desse cosmus; trapaceiam. E, também existem acidentes, como, por exemplo, quando o diabo vomitou, lá pelos XIV, contaminando o campo com sua podridão e seu fétido ácido, resultando na pandêmica peste. Coitado! Ele só ficara enojado demais com tamanha devoção daquele povo, vivente em meio aos ratos.

Aquele povo... Quando Vânia se deu por viva, já estava a cem metros da feira. Despertou num solavanco e iniciou as compras. Bom garfo que se preze, a senhora não deixou para traz a seita de, como de habitual, comer um pastel.

A volta para casa foi um vazio só! A mente dela estava saturada, não queria mais se expor ao esfalfo de raciocinar. Foi um caminho longo, daqueles que assustam os maratonistas psicológicos de primeira viagem.

Chegou em casa, fez almoço, sentou-se no sofá da sala e estava a ler um livro. Cochilou. Quando notou, já eram seis horas e, Adalberto, o vizinho que prometera vir com ela conversar, estava prestes a chegar. Logo, para esperá-lo, deixou o café feito.

E não tardou sua vinda. O homem vestia um sorriso de lua crescente que denunciou o fato de algo bom ter ocorrido. Mas Dona Vânia não o deixou falar.

— Não! Não me conte seu passeio com Lili ainda! — Disse a mulher, enquanto ele entrava em casa e ela fuçava as gavetas à procura de algo. — Eu só quero jogar xadrez!

— Xadrez?! Eu não sabia que a senhora jogava... — Disse o homem, um pouco perplexo.

Dona Vânia achou o dito tabuleiro bonito, caprichoso em seu feitio, e o repousou sobre a mesa. As pecinhas eram de uma madeira leve e muito bem esculpida. Ela organizou as peças em sua disposição e ordenou:

— Sente-se!

Beto obedeceu, sem reclamar. Foi uma partida silenciosa, contudo olho a olho. O cara tinha habilidade. Dona Vânia se lembrou de que, tendo por base experiências desastrosas no passado, era oficialmente uma negação para jogos de tabuleiro.

Estava perdendo. O vizinho se encontrava a instantes de dar o xeque-mate, quando um plano diabólico veio à mente de Vânia. Não podia sentir o agridoce fel da derrota. Então, por descuido induzido, a senhora deixou derramar a xícara de café por entre as peças. Os peões caíram, sem fazer muito barulho.

Era apenas um surto de Ebola.

O oponente a fitou, preocupado e, segundos depois, estavam rindo. Depois do trágico, abandonaram o jogo. Afinal, quem se importa?

Ugo Costa
Enviado por Ugo Costa em 10/01/2015
Código do texto: T5096815
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