624-FUSCA COM FACÃO-

— Esta greve dos motoristas de ônibus está me deixando doida. — Marise reclamava numa roda de colegas. — Minha volta pra casa está complicada. Estou demorando mais de uma hora pra chegar, um percurso que, normalmente gasto vinte minutos.

— É, eles fazem greve e quem paga o pato somos nós, os usuários. Os proprietários não estão nem aí. — Disse Josie, loiríssima e sexy.

— O mais chato é que já saio tarde aqui da faculdade e quando chego em casa, por volta da meia noite, as ruas estão desertas. Não gosto. Sinto medo.

— Se quiser, posso te dar carona. — Zeca entrou na conversa. — Vou para Contagem e o seu bairro fica no caminho.

Marise olhou direto nos olhos do rapaz. Alto, magro, muito magro, o rosto parecia só pele e osso. Cabelos pretos, compridos, oleosos, escorrendo por sobre os ombros. Não lhe inspirava confiança. Mas, enfim, pensou ela, é preconceito meu, ele está só querendo ser gentil.

— Já que dou carona pra Josie, posso levar você também.

— Cabe mais gente no Fusca, Zeca? — A pergunta era da Josie. — Parece que o banco de trás está entupido com sua tralha.

— Claro que cabe, arredo algumas coisas e levo você também, Marise.

A conversa terminou no ar. Marise não disse nem que sim nem que não.

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À saída da faculdade, Zeca e Josie já estavam no Fusca, quando Marise atravessou o portão, dirigindo-se para o ponto do ônibus, a duas quadras de distância.

— Estamos te esperando. — disse Josie. — Vamos, entra aí atrás. O Zeca já limpou o banco.

Marise sentou-se no banco de trás. No lado esquerdo do banco havia alguns pacotes, papeis amassados e dois quadros, telas a óleo. No chão, pisou em um martelo e viu, iluminado pela pequena lâmpada do teto, um facão com manchas pretas.

— Você é pintor? — Ela perguntou.

— Não, essa tralha aí é do Juvenal, meu colega de quarto. — Ele respondeu. — Meu hobbie é andar pelo mato, fazer caminhadas em lugares selvagens. De vez em quando mato algum animal selvagem.

Arrancou o Fusca de repente.

Dirigia com pressa e ia costurando os outros carros. O trânsito àquela hora da noite era fraco, mas ainda assim, ou talvez por isso mesmo, Zeca dirigia sem cuidado. Ultrapassou um carro pela direita, costurou daqui e dali, furou um sinal vermelho e de vez em quando, passava a mão na perna de Josie.

Marisa foi observando e já se arrependendo de ter aceitado a carona. O cara parece que está bêbado, pensou. De repente, ao fechar um veículo pela direita, ouviu-se uma buzinada estridente e um palavrão do motorista que por pouco não abalroou o Fusca de Zeca.

— Olha pro onde vai, seu viado!

Zeca deixou o outro veiculo se emparelhar com ele, e respondeu:

— Viado é teu pai!

O outro respondeu mais danado ainda:

— Vai tomar no cu!

Nisso, chegaram ao semáforo, que estava fechado. Pararam lado a lado. Zeca parecia estar possesso, o rosto vermelho, as mãos agarradas com força no volante.

— Palhaço! — Zeca gritou.

— Tua mãe, chifrudo. — Veio a resposta.

Zeca largou o volante, puxou o freio de mão, abriu a porta com a mão esquerda e com a mão direita apanhou o facão que estava no chão, entre os bancos. Saiu do carro brandindo a arma, e voou na direção do adversário. O qual, a ver a figura alta e ameaçadora, facão na mão, pisou no acelerador e disparou, atravessando a rua com o sinal vermelho, quase atropelando um transeunte. Fugiu, desaparecendo antes mesmo que Zeca voltasse a se sentar ao volante do Fusca.

Marise tremia no banco de trás. Josie não dava sinais de estar sequer surpresa com a atitude de Zeca.

Sem falar nada, colocou o facão entre os bancos, engatou a marcha e quando o sinal ficou verde, saiu tranquilo, como se nada houvesse acontecido.

— Comigo é assim. — Finalmente ele falou. — Escreveu não leu, o facão ta aqui pra resolver qualquer parada.

— Puxa! Que cara grosso. — disse Josie.

Marise não conseguia se recuperar do susto e do medo. Silenciosa permaneceu o resto do percurso. Agarrando-se à sua bolsa e aos seus cadernos e livros. Olhando para o facão com manchas negras na lâmina... será que é de sangue?— Pensou.

Os próximos vinte minutos foram de puro terror. Felizmente o número de carros diminuiu bastante e Zeca tinha a avenida vazia para fazer suas manobras arriscadas.

— Incomoda não — disse Josie, virando-se e olhando para Marise. — Ele faz assim, mas nunca machucou ninguém. Não é mesmo, amor?

— É só não me provocar.

Chegaram à casa de Marise. Ela desceu, segurou com força a bolsa e os cadernos, como se fosse um arrimo. Sem agradecer nem olhar pra trás, abriu o portão, entrou, bateu o portão sem se virar e entrou em casa.

Tremia como vara verde.

— Carona com este maluco, nunca mais!

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Na noite seguinte, evitou por todos os meios encontrar-se com Josie e com Zeca. Conseguiu. Teve cuidado de sair da faculdade quando o estacionamento de carros estava vazio.

Nunca mais pego carona. Principalmente com aquele louco, pensava, enquanto caminhava. Chegou ao ponto e aguardava ansiosa o ônibus, quando ao seu lado encostou o Fusca de Zeca.

Estava sozinho. Pela janela, com um sorriso de caveira, convidou:

— Quer uma carona?

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 21 de setembro de 2010

Conto # 623 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/01/2015
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