623-A BRANCA QUE QUERIA SER ÍNDIA
Setembro de 2010 – A partir deste mês e até o fim do ano, está sendo realizado o recenseamento geral no Brasil. Os recenseadores estão visitando todas as casas do país, com questionários simples — para todas as residências — e outros com questionário mais extenso, que são os chamados “por amostragem”.
Eliana recebeu o recenseador com cordialidade. Mas logo achou que as questões eram muitas e que deveria ser mais simples. Não adiantou o moço (geralmente são jovens estudantes) explicar-lhe que estava sendo questionada por amostragem e que o peso de sua informação será maior.
Então, encheu-se de pomposidade, que lhe é peculiar. Quando o rapaz perguntou-lhe em quais as raças se enquadrava — branca, negra, pardo, indígena ou outros — ela pensou alguns momentos antes de responder.
Pensou na lenda que cerca a família, segundo a qual um padre francês, nos tempos do Brasil-Colônia, teria convivido com uma filha de chefe de índios, lá pelo interior da Bahia. Daquela remota e pouco provada união teria saído uma tata-tataravô de sua mãe, dona Alice. Esqueceu-se de que é descendente de europeus, sendo dois avós eslovenos e uma avó portuguesa, dos quais ela herdou, naturalmente, os traços de branca, caucasiana, sem nenhum vestígio de sangue índio.
Mas a vaidade ou idiotice, ou, como ela diz, para não padecer de “normose”, ou seja, a necessidade de ser diferente, fez com que ela se empinasse toda e respondesse:
— Sou índia.
Com toda atenção o rapaz registrou a resposta no seu pequeno processador e aplicou a pergunta que se seguia, conseqüência daquela resposta:
— De qual tribo?
— Tribo? Sei lá eu. Faz mais de quatrocentos anos que “tudo” aconteceu...
O rapaz permaneceu impassível, e repetiu:
— Qual é a sua tribo, dona?
Desconcertada, gaguejando, teve de refazer a resposta. Mesmo assim, insistindo em ser diferente, respondeu:
— Bem, já que índia não dá, põe aí parda.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 9 de setembro de 2010
Conto # 623 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS