A Importância do Acento
Quando a notícia passou os limites da velha casa de família e chegou à redação do semanário lá da terra foi uma emoção. Havia uma tela de Miró na Freguesia e os proprietários só aguardavam o parecer da peritagem pedida ao Instituto das Artes para definir o passo seguinte. Cacilda, mãe de família e detentora do achado, já dava destino ao dinheiro que dali viria: obras na casa, roupa nova para todos, um passeio ao estrangeiro para o Francisco, um carro novo para a Kika e, ainda, um bónus para os Bombeiros para que a Família ficasse ainda mais considerada. O Poder Local já arriscava cifras para que a Obra de Arte não saísse do Concelho e gente havia a estudar arranjos na Escola devoluta para a transformar, com peças de artesanato e os quadros da sobrinha do senhor padre, num Museu condigno, coisa que a terra não tinha. Se era bonito o quadro? Ninguém pensara nisso nem era coisa importante da discussão acalorada com que todos gritavam razões, soluções, opinião. A Avó quis, logo que o quadro foi achado no meio dos trastes guardados no sótão, dizer alguma coisa mas ninguém a ouviu ou, sequer, lhe deu azo a explicar-se. De há muito que se tornara transparente para todos, uma espécie de peso sem vantagem para ninguém, um dever custoso de cumprir, algo que se suportava melhor fingindo que nem existia. Ela ocupava o quarto que a Kika queria para ateliê de costura, ela só podia comer coisas moídas, ela estava a custar caro na farmácia e o mal dela, por ser velhice, não tinha cura. Mais dia, menos dia e ela morreria como o Avô que lhes deixara as terras e o casarão bem como a gestão dos dinheiros de que todos ainda viviam. Era a vida, dizia, contente, a Cacilda. Comida e cama tem; atenção já não vale a pena. Está velha, desmemoriada e só a poder de gritos se pode falar com ela. Valia mais Deus levá-la, concluía. Ninguém deu ouvidos ao antigo professor que, ao ver de longe a pintura garantia não ser de Miró. Faltavam as cores puras, a composição irreverente, a caligrafia pictórica do Mestre espanhol, a poesia que o distinguia entre todos… “ O que sabe ele de pintura? “clamava a Kikas secundada pelos muitos que já se achavam donos do quadro por direito e já, a seu modo, davam destino aos lucros. Quando, por fim, chegou o relatório da perícia, com as mãos a tremer e a ajuda atabalhoada dos filhos, Cacilda abriu o envelope e leu, sem acreditar, nas letras maiúsculas do assunto: Falso Miró. Seguia-se a descrição exaustiva da tela, a data provável, o desconhecimento de qualquer autoria de reconhecido mérito e, corroborando o laudo, a expressão que foi traumática para todos: sem valor comercial. Caiu um silêncio de morte e, então, pode ouvir-se a voz fina da Avó dizer: esse quadro deu-o o Claudomiro ao teu Pai, Cacilda. Ele assinava Miro. Era assim que lhe chamávamos todos.
Edgardo Xavier
Sintra, 4 de Janeiro de 2015.