Um ato selvagem - Desventuras no Alasca
O cursor do Word piscava à sua frente. O jovem estudante de Jornalismo, com 20 verões vividos, não sabia como imprimir ao papel a sensação exata da cena presenciada por ele quatro anos antes. Martírio eterno, pensava Marcos. Seu cérebro se atrofiava em imagens contundentes e sem fim - Jô Soares, Jornal da Globo, Bradesco, Assolan...a TV se pronunciava às suas costas, dando-lhe palavras suficientes para que ele se abstraísse da missão de relatar o crime em questão. Eis que, de súbito, as cenas surgiram em sua frente, ordenadamente e em forma de palavras, fazendo com que o rapaz esfolasse seus dedos ao atacar o teclado.
“Dois mil e três, mês que não recordo, dia irrelevante. O dia mais claro do Alasca acabara de raiar, às 8h45. Marcos, brasileiro estudante de intercâmbio, contava 16 anos e se dirigia para a terceira aula do dia na Ninilchik High School. Ninilchik, uma cidadezinha ao sul de Anchorage, principal centro referencial do Alasca, tinha 400 habitantes. Marcos se destacava não só por ser o único negro na região, mas também por usar uma camisa com um nome de um animal, com listras vermelhas e pretas dispostas horizontalmente. Por motivo óbvio, o seu time, Flamengo, virara motivo de chacota entre os demais alunos que, em alto e bom inglês, diziam pelos corredores da escola com seus sotaques acentuados “ei, flamingo!”, posto que o encontro das letras “e” e “n” soavam como “i” e “n”. Enfim. Marcos, ao contrário do nome do seu time, era bem respeitado e popular na cidade onde todos se conheciam e todos queriam conhecê-lo. Um brasileiro no Alasca? Em Ninilchik? Atípico.
O dia irrelevante correu tranqüilo paro o garoto. Como de costume, ele ficou até mais tarde vendo seu “irmão” Adam, de 14 anos, treinar luta. Adam era irmão de Molly, filho de Jerry e Susie Byrne - eram a família que se dispusera, com todo e carinho e afeto tal para com um filho/irmão, a hospedar Marcos. Às 16h30, ele foi beber água e, no caminho, viu as cheerleaders praticando no ginásio da escola. Distraiu-se por mais tempo do que pensara: ao ver a última perna ser erguida à altura da cabeça, olhou para o relógio e surpreendeu-se vendo o ponteiro menor na casa cinco. Saiu em disparada pelo corredor em direção ao salão de luta, mas já não havia ninguém lá. Pela janela, procurando Adam, viu o ônibus amarelo da Ninilchik High School sair. Já estava escuro e quase não havia iluminação no trajeto de volta para casa na cidade onde só existiam casas. Pôs-se, então, a encarar o frio de vinte e sete graus Celsius negativos e virou à direita, depois à esquerda, até chegar ao pé da ladeira, onde só se via a luz da lavanderia quase sumindo no horizonte formado pelo pico da rua. O frio gelava-lhe as juntas. Martírio eterno, pensava Marcos. Mesmo sem lata d’água na cabeça, subir a ladeira com neve na venta era ralação. Ele foi subindo, subindo, subindo a ladeira sem fim. No meio do caminho, de repente, ouviu um barulho vindo de perto. Olhou para os lados, mas nada viu além do que pudesse ver com as pálpebras cerradas. O barulho se repetiu. Assombrado, Marcos não sabia o que fazer. Tentou apertar o passo, mas uma sombra irrompeu da escuridão, tapando a fraca luz proveniente da lavanderia. Ficou parado, sem luz, sem visão, sem esperanças, na verdade. O vulto lhe atacou . Marcos não voltou pra casa no dia irrelevante.
O enigma sobre o que atacou o rapaz permaneceu por alguns dias. Marcos não soube explicar o que havia lhe abordado, uma vez que ficara completamente sem visão no momento. Só sentiu duas mãos muito pesadas empurrarem seu peito e uma pisada forte na perna. Todos da cidade ficaram mobilizados com o fato ocorrido. Até onde se sabia, Marcos não tinha nenhuma inimizade em Ninilchik. Algumas pequenas investigações eram feitas no local onde o rapaz fora encontrado pelo motorista do ônibus da escola, no dia seguinte ao irrelevante, estirado no chão gélido da ladeira, sem a mochila. Fora conduzido direto para casa após ser achado. O xerife local, Mr. Wolf, apresentou-se a Marcos durante o intervalo das aulas. Colheu algumas informações e jurou encontrar o responsável pelo primeiro ato de violência em 13 anos na pequena cidade de Ninilchik. O mistério resolveu-se no domingo seguinte ao ataque. Voltando da igreja com a família, o garoto viu um alce andando na rua. Para sua infelicidade e completa vergonha, Marcos notou, pendurado na boca do animal, um pedaço de papel que reconheceu na hora, devido à forma: era uma folha do seu bloco de anotações no formato do escudo do Flamengo.”