Peixe Fresco
“Enquanto houver vida há desespero.”
Jean-Louís Fournier
Quando cheguei o sol mordia a minha pele exposta. Sentia a luz na mão e pensei num dia quente. Pouco depois levantei a aba do chapéu de palha para acrescentar vento ao calor e vi quadricularem-se as calças que assim me descreviam os entrançados do panamá de cor clara e indefinida. A sarja mostrava o passeio dos raios na copa e na aba do chapéu e alguns alongou e deliu junto aos joelhos. Bonito, pensei. Também gostei do céu sem mácula, do som da arrebentação na areia branca, da ousadia das gaivotas à espera que arrastassem as redes. Chegaram dois gatos que mostravam um ar sonolento como se fosse grande o incómodo vir ali buscar a comida. Ouvi as mulheres a cantar, ritmadas, uma espécie de lamento e as bóias das redes a fechar em arco. Em menos de nada, saltavam os peixes na areia, corriam as gaivotas, apartavam-se as algas, excluíam-se os caracóis enormes, juntavam-se por qualidade, raridade e tamanho os artigos mais vendáveis, limpavam-se as redes e compunham-se os molhos dos fios que homens em troco nu arrastariam para algures. A calma veio a seguir e já não havia vestígios da alegria, da luta, do negócio daquela lota improvisada. Os gatos receberam o seu quinhão e dormiam sob os coqueiros da praia longe dos cães e das crianças. As mulheres erguiam as bacias com o pescado e ensaiavam o pregão. Segurei a garoupa pela boca escancarada e cheguei a casa perto do meio dia. Pediras camarão ou peixe pequeno para fritar mas também sabias que o peixe fresco não se escolhe. O que há serve sempre. Riste enquanto amanhavas o peixe e eu ajeitava a lenha no velho fogão. O meu indicador direito sangrava o desespero da garoupa a morrer.