PRÓXIMO PONTO!

PRÓXIMO PONTO

Mudei de emprego há dois meses . Nada demais, apenas um salário cem reais mais alto e uma distância menor. Agora preciso só de um ônibus para voltar para casa e mais vergonha na cara para economizar dinheiro e comprar um carro.

Claro que ando toda animada ,com aquela energia típica das novidades, encarando numa boa o transporte público e as pessoas que encontro nele todos os dias.

Alberto lembra o meu avô: um senhor de seus setenta e poucos anos bonito ,sempre bem arrumado que vai todas as quintas para a casa da filha. Conversamos pela primeira vez porque ele achou incrível alguém da minha idade ler o Primo Basílio (edição de luxo, meu xodó). Sempre animado não reclama dos dias passados com a neta de três anos, cansaço parece não fazer parte do seu vocabulário. Sempre me pergunta sobre meu dia, como estou e já até me ajudou com o troco da passagem.

Caren é americana e mudou para nossa cidade depois de casar com um brasileiro e ter sua filha Rebeca nos EUA. Depois de vê-las algumas vezes trocando fofas declarações de amor em Inglês me apresentei doida para praticar a língua ( faço aulas há mais de dois anos). Pegamos o mesmo ônibus todos os dias pois a escola onde Rebeca estuda fica na mesma rua do meu novo escritório.

Não lembro bem se era uma quinta ou sexta-feira, só que eu estava morta de sono e acordei quando Rebeca me ofereceu um pacote de minhocas de gelatina.

- Tati, quer uma?

Enchi a mão com várias cores e agradeci.Olhando para o banco atrás de mim ela repetiu:

- E você moço, quer?

Não reparei em quem estava sentado naquele banco. Senti o perfume (212, que eu adoro) e o constrangimento do silêncio que ignorou a gentileza de uma menina de seis anos. Caren interveio com seu sotaque carregado:

- Baby, deixa o rapaz.

Nenhuma reação. Só o rosto de Rebeca mostrou algum sentimento: vergonha.

- Sorry, mamãe.

Controlei a vontade de me virar e olhar o rosto de alguém cuja atitude me pareceu desnecessária. Descemos três pontos depois. Quando saímos olhei para o banco de onde veio o perfume. Não havia mais ninguém.

Aquele sono todo teve um porquê . Passei o fim de semana na cama, graças a uma gripe feroz e na segunda tive que tirar forças de outras dimensões para enfrentar o dia.

Enrolada em agasalhos e cachecóis e torcendo para ver a minha cama logo sentei ao lado de um rapaz bonito, de barba por fazer e camisa preta. Parecia ter um emprego moderno do tipo designer ou fotógrafo. Reconheci de imediato o perfume e achei improvável que fosse coincidência.

De repente uma voz grave me assustou.

- A menina... – começou a falar baixo, como se escolhendo as palavras.

Quase derrubei meu celular.

-Oi?

- A menina que estava com você ontem, a dos doces. Não quis ser grosso com ela.

- Ah, que isso, acontece- fiquei com medo de falar demais e ser inconveniente.

- Peça desculpas para a mãe dela, por favor.- recolocando os fones de ouvido voltou a ler seu livro. Simples assim.

Levantou-se sem olhar para o lado.Acho que queria se misturar, não ser notado. Mais um rosto a se tornar familiar pelos acasos das nossas rotinas e diferente de Caren, Rebeca e seu Alberto tanta beleza não me alegrava.Sua atitude com Rebeca havia sido grosseira, eu sabia, mas de onde vinha aquela curiosidade, a minha solidariedade inoportuna?

Naquela semana a filha de Alberto iria viajar e ele mudou o dia de sua visita. Nos vimos na terça, ele sempre ótimo com um de seus bonitos bonés de lã ,a calça bem alinhada e um comentário na ponta da língua:

- O Carlão ( cobrador do nosso ônibus) me falou sobre o rapaz que ignorou a coitadinha da Rebeca.

-Ah, é que algumas pessoas não tem paciência com crianças.

Carlão continuou:

-Alberto, era aquele rapaz, tenho certeza.

-Te falei meu amigo, uma pena. Tão moço e triste desse jeito.

“ O que foi que eu perdi?”. Com certeza eles perceberam meu espanto.

Na minha pressa eu nunca reparei que ele era passageiro diário do mesmo ônibus que nós, ao contrário de Alberto que já havia notado o jeito sisudo, os olhos verdes sempre apagados.

Mudamos de assunto assim que vimos Caren e Rebeca. Nem mencionei o pedido de desculpas; não queria que se sentissem mal. Ele surgiu logo depois com o mesmo livro nas mãos, sem ao menos me cumprimentar. Nenhuma atitude que demonstrasse preocupação com Rebeca

Sentou-se afastado sem tirar os óculos escuros e desceu em um lugar diferente, numa praça famosa pelo alto índice de assaltos. Assim que a porta se fechou o garoto que estava sentado ao seu lado gritou para Carlos.

- Ih, ele deve saber que a praça é perigosa porque deixou o celular aqui.

Carlos olhou para mim e Alberto e sugeriu:

- Querem ficar responsáveis pela devolução?- ético ou não topamos na hora. A parte mais difícil, claro ficou comigo.

- Melhor que seja você Tati.Quem sabe receber a ligação de alguém tão bonita não o anima?

Que tipo de pessoa nós éramos, falando como se tivéssemos direito de julgar o comportamento de alguém que não conhecíamos? Achei um contato de nome casa e ignorando meu bons modos liguei. Sua mãe atendeu.

Comecei a conversa da maneira mais desajeitada possível e em um minuto descobri que o nome dele era Bruno, de sua mãe Lúcia e que moravam sozinhos em um prédio recém inaugurado em um dos bairros mais novos da cidade.Dei meu número e pedi para Bruno me ligar.

Achei melhor marcarmos um lugar para que eu devolvesse o telefone, poderia até ser a minha casa. Não me senti confortável para ir até o apartamento, ideia dada com animação pela sua mãe.

Poxa Dona Lucia, e se eu fosse um mau elemento?

Menos de uma hora depois ele me ligou, a voz em um tom de desculpas, como na única vez em que nos falamos:

- Que transtorno ter que se preocupar com o celular de alguém que você não conhece.

Tentei ser prática.

- Onde posso te entregar?

- Você é a garota que sempre conversa com a americana e a garotinha, não é? Vamos tomar um suco daqui a meia hora?

Nem passou pela minha cabeça confusa recusar.

Sara abriu a Só sucos depois de decidir que não pertencia ao ambiente corporativo das grandes empresas e nem à relação de sete anos com o meu irmão mais velho. Perto de casa, território neutro, preferi encontrar Bruno lá. Se algo ficasse estranho pelo menos eu teria um dos perfeitos wraps para me consolar.

Cheguei depois dele, que não sorriu ao me ver balançando seu telefone como um troféu na mão direita. O que eu esperava?

- Estava preocupado, você sabe como são os ônibus. E as pessoas.

- E as pessoas nos ônibus- eu não poderia ter feito uma piada pior.

- Enfim, obrigado. Posso te pagar um suco?

Sem graça, assenti. Enquanto esperávamos perguntou se eu tinha falado para Caren sobre seu pedido de desculpas. Menti e disse que sim, mas que elas na verdade já nem lembravam daquele dia.

- Que bom, fico mais tranqüilo.

Fez duas ou três perguntas sobre minha vida e trabalho e falou pouco sobre seu trabalho como técnico em mecânica.Uma profissão, uma mãe. Ele começava a me parecer mais humano.

Ofereceu-me carona, mas preferi voltar para casa a pé. Nos despedimos.

- Tudo bem, prazer em te conhecer.- e me beijou, na boca.

Senti seu hálito cheirando a acerola,o perfume inconfundível e uma vontade massacrante de ir embora. Quem beija alguém que não mal conhece com a expressão tão pesarosa, amarga?

- Boa noite Bruno. O prazer foi meu.- eu nunca digo nada parecido, podem acreditar.

Não podia e nem queria estender tamanho desconforto. Os braços fortes, as costas largas não me despertaram nenhuma atração. Como me atrair por alguém que parecia não se atrair por absolutamente nada?

Ao tentar dormir senti a mesma dor de estômago que o excesso de café me causa: faltavam poucas horas para que eu visse Bruno novamente e eu sabia que não adiantava desejar fugir.

Ninguém imaginaria que por trás do meu boa tarde eu estava lidando com um estômago retorcida e uma vergonha imensa naquela quarta feira depois da ida bizarra a casa de suco. Chovia e ventava muito, Rebeca e Caren estavam resfriadas e não queriam conversa. Nem reclamei, só estava interessada na porta que me fazia fechar os olhos toda vez que se abria para algum passageiro entrar.

Ele não apareceu, pela primeira vez em semanas Bruno não foi visto. Respirei fundo e agradeci não sei bem a quê ou a quem. Dois dias até o fim de semana e não senti seu cheiro, não vi a cor das suas camisas modernas, seu olhar noturno. Bruno havia nos deixado, me abandonado com minha ansiedade, meu medo juvenil de revê-lo.

Apenas Carlos lembrou dele. Na sexta-feira, quando passei pela roleta me perguntou se eu tinha devolvido o celular. Respondi que estava tudo certo, que tinha devolvido no mesmo dia em que ele o esqueceu no ônibus.

Só isso. Uma resposta curta para não expressar meu vazio. O sábado e o domingo foram pesados, eternos. Você já se imaginou torcendo para que a segunda feira se apressasse? Eu também não e pode confiar, um dia também vai te acontecer.

Acordei atrasada graças a um celular sem bateria e minha mãe se ofereceu para me levar. Sei que andava quieta, então respondi com boa vontade quando ela perguntou se estava tudo bem no trabalho.

Adivinhando a nossa pressa, todos os semáforos estavam fechados. No primeiro levamos na brincadeira,no segundo e no terceiro começamos a nos irritar. No quarto fiquei pálida.

Ouvi “ All of me” do John Legend vindo do Ford KA parado do nosso lado. Ao volante um rapaz de camisa cinza cantava. No banco do passageiro uma linda japonesa acariciava sua nuca.

Bruno.

Eu quis que ele me visse, não vou mentir. Quando o sinal abriu tirou os óculos e me olhou. Disse oi e sussurrou um obrigado. Ao sorrir, me aqueceu.

Talvez minha reação normal seria a de imaginar que Bruno me usou, traiu uma namorada e se arrependeu. Mas ele estava diferente, desperto.E sei que não me agradeceu pelo celular.

Tudo estava diferente, seu olhar, o calor que me dedicou naqueles cinco e tão rápidos minutos. A cor do meu rosto voltou, não mais me importei com meu atraso, com sinais insistentemente vermelhos.

Esperaria todos os ônibus, semáforos para ver a verdade trazer conforto e alegria ao rosto do misterioso e lindo Bruno. Mudou meu dia para melhor saber que sua felicidade foi mais rápida do que eu.

D.SConsiglio

Débora Consiglio
Enviado por Débora Consiglio em 20/12/2014
Código do texto: T5075933
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.