NÃO FOI NADA DEMAIS

_ Não foi ninguém, apenas um negrinho pobre, de corpo franzino, aparentemente uns doze anos de idade que vendia laranja ali na esquina. Ele tinha o cabelo rebaixado, mas a gente via que era ruim e os beição parecendo um um pirulito de rapadura preta. Ninguém de importância, talvez tivesse no lugar certo, na hora errada, e digo mais, antes ele que eu ou qualquer um dos meus filhos! Que Deus nos livre e nos guarde sempre...

_ Mas alguém viu? Alguém sabe dizer o que houve de verdade?

_ Bem, de certeza eu não sei dizer, mas de ouvir falar, parece que D. Miluca, aquela velha ali, mas não dê trela para ela não, é moca, coitada, e já está variando do juízo. Além do mais, todos os dias ela comprava laranja ao negrinho, dizia que gostava de ajudar...

O repórter saiu agradecendo a simpática senhora, caminhou mais um pouco e quis ouvir outras falas, colher outros depoimentos. D. Miluca estava lá incontrolada, dizia que viu, que aquilo era uma injustiça, logo no domingo, no dia do senhor...

Segunda-feira, como todos os dias, Antônio acorda cedo, veste roupa limpa, toma o café com pão, põe o cesto de laranja nas costas e vai descendo o morro sobre as orações da mãe. Vai deixando para trás o morro de Jesus me deu, pega carona com um tio lá de baixo, anda pra mais de horas e meia até chegar no ponto certo de venda. O cesto ele guarda na casa da boa senhora da esquina e no outro lado começa a gritar laranja, laranja boa e doce, quatro é um real e dez é dois real! Naquele dia, já tarde da noite, o tio não apareceu, Antônio forrou o chão com alguns papelões e dormiu na lateral de um prédio velho. Sentiu frio e foi acordado nas primeiras horas da manhã de terça-feira com fortes pingos de chuva. O dia correu assim, assim também a casa da boa senhora, toda fechada, sem nenhuma janela aberta.

A quarta-feira fez sol, uma multidão de gente indo e vindo e Antônio chamado por D. Miluca. A mesma deu-lhe roupa limpa, pão e café. Ele pegou as laranjas, pediu para que a senhora guardasse para ele o dinheiro da venda e em instantes estava no sinal. Estava fraca a venda, não conseguia vender. Um carro passa veloz pela água empoçada, mela a roupa do vendedor de laranja, ele se irrita, xinga e se vai. Troca laranja por cachorro-quente, sente saudade de casa, lembra-se da mãe fazendo carvão, dos três irmãos mais novos, do pai desaparecido e do sonho de dar àquela que o trouxe a vida uma vida melhor. Já de tarde vai pastorar carro, sente enfado no corpo e ao lado de uma lanchonete assiste ao jogo. Dorme nesta noite na praça com mais outros moradores de rua.

Quinta-feira e a vontade de voltar pra casa, mas o cesto das laranjas ainda tem grande quantidade. Vende laranja, pastora carro, tem sorte, a sorte de sexta-feira e mais dinheiro para D. Miluca guardar.

O sábado é dobrado. Ainda cedo vende todas as laranjas, ganha almoço da boa senhora e no fim da tarde espera o tio que não aparece. Fim da tarde de sábado vai ao rio, junta-se a outros de sua idade, mergulha por longas horas, escurece, esquece-se de ir a casa da D. Miluca, fica por aí, por aí inventa de pedir comida na mesa de jovens ao lado, tomba, bate na cadeira de um moço jovem, o mesmo se lambuza todo de mostarda e passa a ser motivo de riso.

Sai de lá sem direção em meio a insultos e ameaça. Não tem como voltar para casa, precisa pegar o dinheiro com D. Muluca. Resolve dormir na calçada, sabe do hábito da boa senhora de ir a primeira missa do domingo, na hora do canto do galo.

Dormiu logo, estava exausto. Sonhava com a casa grande que queria dar a mãe, com vários quartos e muitos banheiros, brinquedos para os irmãos e muita comida. Fora da casa queria uma piscina, um imenso jardim e no meio queria uma fonte com a imagem de um lindo anjo a jorrar água sem parar... Acordou bruscamente quando se sentiu inundado pela água da fonte do seu sonho e ao abrir os olhos a surpresa, o anjo era a cópia fiel do jovem que logo mais, à tarde, havia topado, branco, cabelos loiros, olhos azuis, que ateava sobre ele uma água de sabor e cheiro diferentes...

_ Isso é para você aprender a olhar por onde você anda, negrinho!

E aos invés de molhar, o corpo dele era apenas uma imensa labareda de fogo. O carro saia em disparada, a boa velhinha via tudo pela porta que se abria, mas nada pode fazer, enquanto outros diziam:

_ Não, não foi nada demais, apenas o corpo de um moleque, negro, franzino, vendedor de laranja que atearam fogo...

Marcus Venicius