Candidato do coração
O Zé Redondo era contra-parente nosso. Casado com a tia de mamãe, Nininha, tinha um cargo de bombeiro hidráulico junto à prefeitura da Velha Serrana. Ganhava pouco para o sustento da família, que incluía 3 filhos ainda pequerruchos e o envelhecido pai, o Friciano, que ficara só no mundo, esperando que São João, o das fogueiras, o chamasse um dia para sua companhia.
Zé Redondo não explicava a razão de seu apodo, que o acompanhava de muito tempo. Mas não o rejeitava tampouco, embora não chegasse a se classificar nos rol dos gorduchos. Mais rotundo era seu irmão, Joãozinho, que, nem por isso carregava o apelido de José. E desavindos, iam ambos tocando suas vidas, como Esaú e Jacó dos modernos tempos.
Para complementar o magro ordenado, Zé fazia os seus por foras. E era profissional reconhecido. Na casa de meus pais mesmo ele instalou uma serpentina que nos assegurava o direito aos banhos mornos. Pelo menos aos primeiros da fila.
Contudo, seu gosto maior, era sabucar os potentados da cidade, que para nós se gabava de visitar e de edificar sólidas amizades. Um tal doutor Geraldo Guerra, advogado e poeta da cidade era sua paixão ao quadrado. E Nininha, ao invés de se enciumar, comprazia-se das ligações do marido. Ajudava-o até a policiar os sobrinhos-netos para que não tocássemos nas belas ameixas e jabuticabas do quintal reservadas para o amigo das letras. Tinhamos, todavia, livre acesso à fossa, que embora cheia de bossa, igual fedia.
Zé, além de cristão praticante, buscava inclusão social em nível igual, ou mais acima. Frequentava os amigos e não perdia a ocasião de transitar pelas quermesses de então. Um de seus maiores trunfos foi a indicação para ser festeiro da barraquinha de São José, na vizinhança de nossas casas. Refestelou-se com aquela distinção.
Com a vaidade a lhe subir à cabeça, e o sentimento acendrado da cidadania, Zé resolveu lançar-se candidato a uma vaga na Câmara Municipal. Ser vereador, passou o sonho de seu florido jardim.
E numa modorrenta tarde dominical, em que as rádias espoucavam a animação do futebol, naquela época do Rio e de São Paulo, e quando ainda Silvio Santos não vinha ali com as suas Tamakavi, fomos pegar o Zé literalmente com a mão na massa, em plena campanha.
Com a ajuda da inefável companheira, e um baldinho de tinta, eles pintavam num pano branco uma faixa de convocação ao eleitor: José Raimundo Soares, o candidato dos humildes, lema dos mais salutares.
Houve ainda outra faixa, cuja feitura não chegamos a testemunhar, e nessa o expedito Zé dava um espaço para o candidato a prefeito, um tal Morato, a aparecer, in nominis, ao seu lado.
Zé não cogitou de associar o Redondo aos seus reclames. Não cabia, afiançava, a um edil em formação, aceitar ser tratado por um reles apodo. E nem mesmo o Zé ganhou o lugar do agora José. E ainda se jactou, a boca pequena, para o espanto de meus pais: Só com os votos do Campo Grande - um povoado vizinho, onde era bem conhecido - os compadres me elegem.
E veio a eleição. Seguida por uma angustiosa apuração. O que as urnas revelaram, contudo, foi a mais amarga decepção: O candidato Soares
tivera uma pifia votação. Até mesmo em sua urna, que compartilhava com a companheira Nininha não que um voto tinha.
O homem adoeceu. E até andou evitando passar por nossa rua para os seus afazeres na cidade. Dava uma volta. Mas breve se recompôs, muniu-se de coragem, dum caderninho de notas e foi tirar satisfação com papai, de quem esperara, somada a familia estendida, pelo menos uma dezena de sufrágios. Papai foi explícito e duro com o derrocado:
Prometi meu voto e de minha mulher e cumprimos nossa promessa. O único voto que você recebeu em sua urna pode ser o seu, mas duvido que sua senhora, que já foi professora, instruída, iria votar errado...
Zé, que voltara a ser Redondo, embora um tanto murcho, engoliu seco e ainda fez algumas ponderações, assegurando sua certeza de que negociantes mais abastados da cidade, padrinhos até de seus filhos não iriam negar apoio. O problema seria agora como inquiri-los, já que as contas disparatavam-se de forma avassaladora. Das intenções declaradas à votação apurada, aquele abismo abissal.
Quem o consolou foi a escudeira Nininha, de quem continuou sendo candidato do coração. E nunca mais se envolveu noutra eleição.