São Apenas Dois Bons Rapazes
Acordei ao som do despertador. Quando olho para a minha cama de casal, vejo que ela está bagunçada e pelo som vindo da cozinha, vejo que Helder voltou da visita que fez aos pais neste domingo.
— Bom dia, dorminhoco. — diz quando chego à cozinha.
— Bom dia. A que horas você chegou ontem?
— Quase à meia-noite. Houve um acidente na estrada. Um bêbado como sempre resolveu apostar corrida com o vento.
— Complicado, hein? — digo enquanto vou ao banheiro tomar um banho e escovar os dentes.
Depois de me arrumar e comer, saímos do nosso apartamento e encontramos nossa vizinha, dona Zuleica, com dificuldades em carregar uns sacos de lixo. Eu me ofereço a ajudar e notamos que ela se surpreende com a nossa presença.
— Gabriel é você? Que susto!
— Bom dia, dona Zuleica. E desculpe por te assustar.
— O que a senhora faz acordada tão cedo? — perguntou Helder.
— Eu tenho uma consulta marcada no hospital. Os funcionários me pediram para eu chegar bem cedo senão eu perco a entrega de senhas.
— Ué... mas se ela já está marcada, por que a entrega de senhas? — indagou Helder.
— Ai meu filho você não sabe como essas coisas funcionam, não é?
— É que temos convênio. — esclareci.
— Entendi. Estão indo trabalhar?
— Sim.
— Então, bom trabalho. E muito obrigado por me ajudar a carregar estes sacos de lixo — disse ela quando já estávamos saindo do conjunto residencial.
— De nada. E boa sorte. — disse Helder.
Como hoje é dia de rodízio, Helder e eu vamos de trem para o trabalho. Até a metade do caminho, encontramos dificuldades em conversar por causa de um garoto com um celular ouvindo funk sem fones de ouvido que depois foi expulso do vagão por meio de uma briga violenta de passageiros que reclamaram com ele, mas o moleque não quis mudar de atitude. Apesar de o vagão estar lotado, Helder ficou na minha frente o tempo todo querendo me proteger. Depois que o garoto foi embora, pergunto a ele como foi ver os pais.
— Como sempre. Meus pais estão na mesma e meu irmão mais novo não vai com a minha cara.
— Engraçado... não lembro dele ter reclamado da sua vida quando você pagou o curso de informática que ele fez.
— Pois é.
No resto do caminho conto o que se passou no fim de semana e viajamos tranquilamente.
Somos os primeiros a chegar à editora da revista em que trabalhamos e cada um vai para o seu setor. Helder para o RH e eu para a diagramação. Cumprimento o pessoal e dou início ao meu trabalho.
Segunda-feira é um dia ruim para todos. As notícias correm e se algo importante acontece, temos de mudar tudo. Por sorte, nada muito grave se passou então prosseguimos o nosso trabalho normalmente.
Meio dia. Hora do almoço. Helder e eu vamos a um restaurante e no meio do caminho uma mulher joga pela janela do carro a embalagem do lanche dentro de um copo. Eu pego o material e jogo na lixeira mais próxima.
A comida estava excelente. O que não estava realmente bom era o papo em uma mesa próxima. Uns garotos que aparentavam ter dezoito anos bebiam e falavam como se tivessem catorze. Sorte de termos sentado perto da TV, assim as porcarias que eles diziam não nos incomodavam tanto.
Ao término do almoço, volto para o meu serviço. Pressão como sempre. O pessoal perde as estribeiras e xingam um ao outro. Tento acalmar o pessoal e me chamam de veado. Na hora todo mundo fica quieto e talvez por notar que passaram do limite (ou temendo um processo), o cara que me ofendeu pede desculpas. Aceito numa boa.
Terminando o serviço, voltamos para casa de trem. Eu e Helder tentamos nos proteger do povo que mataria a própria mãe por um lugar. Sobrevivemos e vamos batendo papo, apesar dos olhares dos demais passageiros para nós. Não somos afeminados nem nos vestimos de modo extravagantes como muitas pessoas fazem, porém o preconceito do povo parece nos perseguir como se estivéssemos fazendo algo de errado em conversar. Engraçado, perto de nós há um casal devorando-se e ninguém os condena por atentado ao pudor.
No caminho para casa, começa a chover. Por sorte Helder já havia previsto isso e carregava consigo um guarda-chuva. Vamos juntos. Por sorte não está difícil caminhar. A única parte ruim é quando passamos por um religioso fanático que, por ver dois homens tão juntos já soma dois mais dois e diz que queimaremos no inferno.
— Incrível como eles esquecem aquela parte do “não julgue para não ser julgado” — comento com Helder, que cai na gargalhada e coloca a mão no meu ombro enquanto prosseguimos com a caminhada.
Depois de passar quase o dia todo no hospital, dona Zuleica voltava na companhia de sua amiga do bingo, Agatha, quando ambas viram Helder e Gabriel.
— Credo, Zuleica. Olhe aqueles dois. Como você consegue ser vizinha daqueles dois? Isso não é coisa de Deus. — comenta Agatha.
— Estranho você dizer isso. — replica Zuleica. E comenta — Onde você vê abominação, eu vejo apenas dois bons rapazes.