A Eterna Chuva

PARTE 1 ~

Pela janela, eu via o domingo frio acontecer e me perguntava o que fazer com ele. Eu estou vivendo dias muito estranhos, não consigo explicar. Fico apenas parado na maior parte do tempo, olhando para o chão e o nada, sem saber o que está acontecendo comigo mesmo ou com os outros, ou com qualquer outra coisa.

Parece que perdi algo muito importante, e não sei definir o que é importante e o que não é, mas sinto isso, sinto que o perdi e agora meu coração, tão perdido, perdeu qualquer rumo e direção e base e certeza. Nem mesmo o uísque resolveu e sim, tentei afogar isso no melhor uísque que já bebi, mas não! Não resolveu. Estou ficando sem alternativas, sem fórmulas prontas para fazer isso funcionar, voltar a funcionar.

A maior parte dos dias é apenas uma cópia perfeita do anterior. Eu consigo descrevê-lo com detalhes antes que aconteça e prever todas as surpresas, que, pensando bem, na verdade não possuem nada de surpreendente. A vida como uma estréia no cinema: Normalmente o filme e a experiência são inferiores a expectativa criadas ao redor deles.

Eu pego o ônibus e está cada dia pior. Os rostos sem olhos, sem nariz, sem boca... Todos aqueles manequins me encarando, como bonecos de madeira e plástico, inanimados e ansiosos por ossos, famintos por carne e sedentos por sangue. Eu vou olhando pela janela e só vejo mais espectros de pessoas, rascunhos da vida. Parece que está tudo em ruínas, ainda que não esteja realmente. Vejo apenas decadência. No trabalho não é diferente, talvez seja um pouco pior. Convivo com um tipo muito sombrio de manequim: Aquele que de tão apagado, corta um sorriso no rosto com navalha, através do plástico, e pinta em si uma felicidade que jamais possuiu ou possuirá. Aquela cabeça plástica dilacerada sorrindo grotescamente para tudo e todos, amando a vitrine que aprisiona. Meus companheiros de trabalho exageram sua própria importância, exageram-se (ainda que nada sejam) em praticamente tudo.

Por estes dias, quando estava me preparando para descer do ônibus, prestei atenção na mulher a minha frente. A pele branca, tão branca como a neve, os cabelos escuros um pouco abaixo dos ombros. Eu sou bom em descrever olhares, mas o dela é um olhar diferente de tudo, jamais vi um igual. Ele passa inquietude ainda que seja sereno... É atento mesmo quando está distraído. Ela está a não mais que um metro de distância e olha através do vidro na porta de saída, como se também esperasse por algo, mas o quê? O ônibus para e todos descemos. Em seu pescoço, um lenço amarrado balança rápida e brevemente com a brisa que sopra e logo o lenço assenta novamente sobre seu peito. Quem será ela?

Engraçado. De repente me sinto muito curioso, curioso demais. Mas o que eu posso fazer? Nada. Nada pode ser feito. Cada qual em seu próprio mundo: A minha eterna chuva continua caindo no meu vazio, alagando-me. A eterna chuva é uma profunda solidão, ou é um estado de espírito solitário: Não importa o quão próximas, as pessoas não querem sentar ali do seu lado, numa chuva perpétua, elas não querem caminhar com você e se molhar. Não querem te conhecer tanto assim, a chuva me isola de todo o resto, é como uma barreira que existe entre eu e eles. Mas e dentro dela, que mundo existe? Como será seu mundo moça?

Acabei de sair de um verdadeiro pesadelo. Meu passado recente com mulheres foi uma loucura bestial. Não encontrei dificuldades, eu encontrei todas as dificuldades. Eu só queria sossego e companhia, fazer aquelas coisas tão normais, e no entanto nenhuma me completou, nenhuma me complementou, elas só ofereceram problemas. Sou cuidadoso com as pessoas que conquistam meu afeto e tentei ajudar de todo jeito. Que otário. Acabo sempre do mesmo jeito: Comprando o problema de outra pessoa e esquecendo dos meus próprios.

Não espero muito das pessoas.

Tampouco espero das mulheres.

Não espero muito da vida.

Não tenho grandes ambições, não faço planos.

É demais pedir por um pouco de paz e tranquilidade?

Por poder ficar no meu canto, curtindo meu tempo à minha própria maneira?

Vejo a areia da ampulheta deslizar enquanto imagino sonhos impossíveis de se realizar...

PARTE 2 ~

Passados alguns dias, veja que surpresa: Consegui conversar com ela, ainda que tenha sido obra do completo acaso. Ela é bastante diferente do que eu imaginava, e somos muito parecidos e consonantes. E ainda me pergunto, como isso é possível? Estava imaginando um dia desses como seria possível que nós dois, completos desconhecidos, nos aproximássemos. A vida pela primeira vez me pareceu gentil como ela não é há anos. As surpresas desse encontro estão me intrigando até agora.

Ouço agora quase que todo dia seu sotaque mineiro quando narra suas histórias, e finalmente entendi aquele olhar. Não que ele tenha ficado simples de descrever, só me sinto capaz de entendê-lo, sem contudo ser capaz de traduzir com palavras. É como uma troca entre dois espíritos e não duas pessoas: Ambos sabemos como são os mundos de cada um ainda que nunca tenhamos falado disso. Os sentimentos parecem vir de fora e não de dentro, trazendo consigo mensagens e significados mudos.

Eu não sei como ela se sente a meu respeito (e ao mesmo tempo, sei). Mas gostei muito dela. Ela é o calor que derrete o mar congelado que existe no coração. Me parece ser uma pessoa que, diante da eterna chuva, sentaria ao meu lado em um banco de madeira e ficaria observando comigo. Faria da parede que separa a principal porta que une. Parece ser...

É o tipo de companhia que faz bem. Que quero por perto e sinto falta. Isso de certa forma é bonito mas acaba comigo também, não sei sentir essas coisas, sentir falta. Não sei o que fazer! É como se eu tivesse dezesseis anos de novo e fosse a criatura mais socialmente inapta do mundo. Sou acostumado a indiferença, ao olhar de repulsa e incompreensão, mas ela é preocupada e doce. E o que eu posso fazer por ela? Um poema? Tão pouco? Não sei expressar o carinho que sinto. Não sei como doar esse afeto.

Pela primeira vez eu encontrei alguém que não faz eu me sentir mal por ser esquisito, pois se somos esquisitos, então os normais é que são a coisa mais tediosa do mundo! Ela faz com que eu me sinta especial por todas as diferenças que fui ensinado a acreditar que são falhas. Pela primeira vez, encontrei alguém tão diferente quanto eu, tão fora de sintonia com o mundo. Nossas engrenagens parecem se encaixar e girar, quando que com a maioria dos outros elas só enroscam.

Será essa a confusão? Será isso que me deixa tão inquieto? Não saber lidar com a aceitação ou com algo tão livre e peculiar? A vida realmente não faz o menor sentido, e não existem razões para se estar vivo. Mas quando se continua vivendo, você pode acabar encontrando coisas interessantes: Uma flor no deserto, um pássaro cantando na janela, uma história bem escrita, uma companhia que te acompanha na chuva.

Há tanta coisa que eu não entendo... Por tantos anos, assistir o mundo através dos meus olhos, com uma cortina d'água formada pela chuva sem fim que cai dentro de mim me fez solitário por natureza. Ninguém quis se aproximar tanto. Ninguém quis se molhar, ninguém quis entender o que eu era.

Será mesmo que ela é diferente?

Eu sigo diante da rotina, mas agora sinto que algo está mudando.

Não saberia explicar o quê.

Não saberia dizer se é boa ou ruim, se é branca ou carmesim.

Estou completamente perdido e perdidamente completo.

Desculpem-me.

Eu realmente não consigo entender...

Vinícius Risério Custódio
Enviado por Vinícius Risério Custódio em 15/12/2014
Reeditado em 30/04/2016
Código do texto: T5069934
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