Isolamento acústico
Estourava nos ouvidos, “It could be wrong, could be wrong / but it should’ve been right / It could be wrong, could be wrong / Let our hearts ignite…”. E ele repetia o refrão pelas ruas, falando daquele amor errado que deveria ser certo. Os dedos dedilhavam a guitarra imaginária e as pessoas olhavam desconfiadas para aquele cara monocromático, com roupas pretas, magro, de cabelo longo preso num rabo de cavalo. O sol forte o fazia suar, mas nem percebia. Ostentava sua blusa de manga de frio como se estivesse arrasando num palco, num show de rock, igual nos bons tempos de adolescência e algumas substâncias na cabeça, os dedos voando na guitarra real e o vocalista gritando seu sotaque texano do interior de São Paulo. Nostalgia coçava as pontas dos dedos. Era saudade, mas também vontade de seguir adiante, continuar sua velha vida.
A porta do bar estava aberta, não pensou duas vezes para entrar e solicitar um copo de vinho. Não tinha. Foi conhaque, Palhinha, uma marca controvertida, facilmente encontrada na boca desses que se perdem pelas ruas imundas com bitucas e camisinhas usadas. Atrás do balcão, uma moça. Estranha, esquisita, fora dos padrões. O coração balançou. “Love is our resistance”. Sim, pensou ele concordando plenamente com a música. O amor é isso mesmo. Restava no bolso, míseros cinco reais, mais duas doses e teria que pedir água da torneira para continuar encostado ali, a réstia do pagamento estava no bolso de trás da calça. Cinco reais. E o que faria depois disso? Não estava mais disposto a verter sangue pelos patrões miseráveis. O que fez com seu último emprego? O possível para ser demitido. E ainda chamou o chefe de veado um milhar de vezes, em pensamento. Malditos porcos nojentos, gritou já longe deles. As pessoas na rua encaravam assustadas seu rompante de ira. Fodam-se todos! Berrou. Mas a bravata não foi longa, a polícia não estava distante, e apesar de detestar o sistema, não estava pronto para provar o gosto da cadeia ainda. Na verdade, o espelho lhe devolvia o olhar como um cara de forte charme, sexy e matador. Provavelmente seria estuprado na cadeia. Sorria para si pensando que era mesmo um cara fodão, e que os dentes meio tortos, eram sua marca mais significativa. Que mulher resistia aquele sorriso sensual?
Nenhuma. Sorriu para a esquisita do bar. A pobre sequer reparou, estava vidrada no celular, falando com seus amigos virtuais. Mas seriam amigos? Amigos não são aqueles que estão ao seu lado quando podem? Te dão abraços apertados e beliscões ardidos? Como é possível um amigo a quilômetros de distância? Ele também não saberia dizer, é um ludita, de certa forma, sempre às voltas com um celular que não funciona. A música que estoura nos ouvidos é proveniente de uma quinquilharia, uma fita cassete gravada num aparelho de som encontrado em ótimo estado num antiquário.
A esquisita continuava sorrindo para a minúscula tela. Perdeu a chance de ganhar um amigo real. Saiu sem pagar o conhaque. Dane-se. A garota nem percebeu. O fone continuava repetindo uma e outra vez a mesma música. Os acordes percorriam seu corpo como eletricidade. Eufórico passeou pela cidade, explorando todos os cantos que conseguiu. Estava impaciente já. Sentou-se ao lado de um hippie e seus aparatos e travou uma conversa completamente inconsequente. Deixou os cinco reais ali, e levou um anel feito de coco. O que faria com aquilo? Passou de volta no bar que dera o cano e olhou lá para dentro. A garota tinha sido substituída por um troglodita. Sorriu satisfeito consigo mesmo.
Quando o relógio marcou 18 horas, eu saí do meu trabalho para dar com ele me esperando na portaria. O que vou fazer com você? Perguntei. Nada, mulher! Ele respondeu e sorriu confiante, sua barba escondia a covinha na bochecha, mas eu podia adivinhá-la, ela sempre estaria lá. Me entregou o anel de coco, mas não coube em nenhum dos meus dedos gordos. Vou usar num colar, prometi. Ele concordou. Disse que tinha escrito uma música para mim. Ele sempre diz isso, nunca me mostrou a letra. Você vai chorar se eu mostrar, ele me conta. De tristeza, eu replico. Ele é impertinente e não fala nada. Um dia eu mostro, me promete. Sabemos que não vai acontecer, ele não compõe nada, só toca, ou tocava. Penso que deveríamos ter nos conhecido quando ele era músico, mas pensando bem mesmo, talvez nós não combinássemos como agora. Vamos indo? Pergunto a ele. Sem dúvida. Está ouvindo o quê hoje? Muse, me responde. Me passa um dos fones e andamos juntos pela calçada abarrotada. Mal posso ouvir a voz do vocalista. A música é boa, logo não prestamos atenção em mais ninguém. Estamos sozinhos nesse nosso mundo alternativo. Caminhamos lado a lado e não há necessidade de falar nada, pois nós já falamos tudo.
Prometi fazer de ti uma personagem, não sei se consegui, mas está aí, Cleber. Um prazer te desenhar pelos contornos que desconheço, ou talvez, conheço bem demais.
Muse – Resistance
12/12/2014
02:31
“If we live our life in fear
I'll wait a thousand years
Just to see you smile again"