Deus ao mar o perigo e o abismo deu

Seus pés pisavam brutalmente a areia fofa da praia. Sentou-se à beira da imensidão do mar incrivelmente azul. Observou cuidadosamente algumas conchinhas fechadas à seus pés. O quão frágeis e pequenininhas elas eram em comparação àquelas águas ferozes à sua frente, em comparação a si mesma. Riu baixinho ao imaginar como aquelas conchinhas não imaginavam o quão frágil ela se sentia naquele momento. A água, mansamente, tocou seus pés. Estava absurdamente gelada. A onde varreu as conchinhas que antes observava. Sentiu uma vontade ligeira de ser levada também.

A praia estava vazia, exceto por um rapaz, sentado no outro extremo. Na falta das conchas, reparou no rapaz. Era bonito a seu modo, traços delicados, olhar profundo. Ele parecia estar refletindo sobre algo extremamente filosófico, pois suas sobrancelhas oscilavam em expressões ora curiosas, ora indignadas. Imaginou sobre o que aquele homem estaria fazendo na praia àquela hora, em profunda reflexão. Imaginou o seu nome, e convenceu-se de que ele deveria chamar-se Tiago ou Marcos. Riu em voz alta da sua reflexão aparentemente sem sentido. Achava muito gostoso chegar à conclusões não-cartesianas. Imaginou se era casado, enrolado, enamorado, poligâmico, ou qualquer coisa que indicasse que tinha uma (ou mais) companheiras. Imaginou a sua idade. Chegou a conclusão (mais uma vez não-cartesiana) de que deveria ter, no máximo, 32 anos. É, não deveria ter mais do que isso. Imaginou, mais uma vez, sobre o que refletia. Poderia estar refletindo sobre tantas coisas...tudo cabe à reflexão. Poderia estar refletindo sobre o amor, sobre o seu amor, sobre o amor dos outros, sobre o amor platônico. Poderia estar refletindo sobre a vida, sobre a morte, sobre a felicidade...Ou apenas poderia estar refletindo sobre nada. Ou não refletindo. Poderia ser uma daquelas pessoas sortudas que são capazes de apenas observar. Aquelas às quais o inconsciente dava uma trégua e não ficava perturbando e jogando imagens aparentemente sem sentido toda vez que o nada, tão prazeroso, tentava tomar conta do pensamento. Maldito inconsciente.

Passaram-se minutos que pareceram horas. O homem não mudara de posição: as pernas cruzadas, o olhar em algum lugar além das belezas objetivas daquela praia, as sobrancelhas ainda indo e vindo curiosamente. Perguntou-se se ele percebia que ela o observava incansavelmente. Aparentemente parecia estar alheio a qualquer outra coisa que não aquilo que seus olhos distantes fotografavam. Aquele homem lembrava-lhe música. Não sabia exatamente como objetivar essa comparação, mas achou uma boa explicação (mais uma vez não-cartesiana) para o modo como o homem a fazia sentir. Na verdade não era a sua presença, nem a sua pessoa, nem a sua aparência gostosamente masculina que a fazia sentir-se bem. Era o que ele representava. Para ela, ele representava a reflexão humana, a capacidade humana de pensar a vida. Música.

As ondas iam e vinham. O sol ardente deu lugar a uma tímida lua crescente e a algumas estrelas timidamente espalhadas pela imensidão escura e infinita. A maré subira, e agora ela encontrava-se dentro da água. Percebeu, de susto, que o homem levantara-se e caminhava para algum lugar que, ela tinha uma certeza esquisita, o levaria a seu encontro. Ficou parada, apenas observando seus passos vagarosos porém decididos. À medida em que o homem se aproximava, ela reparava cuidadosamente em seus traços muito bem definidos. Seus olhos absurdamente pretos agora focavam algo que ela conseguia facilmente perceber o que era: os seus próprios olhos. Ele o focava com tanta intensidade que ela se sentiu gostosamente intimidada. Sentia-se lida e gostava daquela sensação. Em toda sua minuciosa observação, não percebera o quanto aquele homem não parecia humano.

Ondas, sal. Muito sal. Garganta, entranhas. Imensidão.

Não suportou olhar pra si mesma, não suportou enxergar o outro que era ela e todo o mundo. Poucos suportam o peso do eu.

O mar engole quem não se (re)conhece. Que se salvem os espertos. Ou os tolos.

Giovanna Matta
Enviado por Giovanna Matta em 14/12/2014
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