Sobre aquela gota d'água que caiu na minha testa

As sombras deslizam elegantemente em meio à uma multidão de ninguéns. As gotículas da chuva já começam a cair de forma espaçada; molham teimosamente a calçada já encharcada (quantas delas seriam da chuva, e quantas delas seriam lágrimas derramadas?). A quem, de fato, importa? Da minha janela consigo contar as sombras lá embaixo. Por quê só consigo contar as sombras, e não as pessoas?

Olho pra cima e vejo, na minha estante, centenas de livros, que contabilizam centenas de histórias criadas por outras centenas de pessoas que, como eu, num dia importante, mesmo que qualquer, metamorfosearam inquietudes da alma em sílabas -esperemos -bem arranjadas. Volto-me pra dentro de mim mesma. Moonlight sonata começa a tocar, e toca fundo. Delicada e deliciosamente dolorida. As suaves notas de Beethoven acariciam suavemente minha mente inquieta.

Sento no parapeito da janela, no intuito de criar um clima perfeito para se arquitetar uma reflexão barata acerca de qualquer coisa. As sombras continuam deslizando lá embaixo, e a chuva parece alheia aos que abdicam dos carros para pisar a vida.

Reparo que as sombras têm diversas formas e tamanhos, mas são apenas sombras, reflexos de almas, pessoas, coisas e vidas que se confundem num emaranhado de cinzas. Daqui de cima, não sou capaz de distinguir as coisas das pessoas. Não sou capaz de enxergar o âmago, apenas a superfície. Não sei o peso daquelas sombras. Deslizando elas me parecem leves como plumas, como se perfeitamente adequadas à lógica da vida. Inabaláveis, arrisco dizer.

Não sei dizer quantas daquelas sombras cinzas refletem dores, felicidades, angústias, medos, pavores, euforias. Não sei dizer qual o peso de cada passo caminhado. Dos meus eu sei. Às vezes eu sei. O peso dos outros, eu suponho. Não é para isso que vivemos? Para supor o âmago das sombras e descobrir o mistério do cinza?

Sinto-me tão jovem e tão velha ao mesmo tempo. Observar sombras? Será esse o sentido da minha vida? Uma moça no parapeito da janela escrevendo as sombras. Soa-me poético, porém insólito. Um pingo me cai na face, e eu me sinto viva. Eu sinto nas minhas entranhas o prazer de estar viva, mesmo que seja para observar sombras. Eu agradeço a vida e à vida.

Quantas vezes fui sombra aos olhos de um outro alguém num outro parapeito de janela? Muitas, suponho. Muitos já me colocaram vestes que não me serviam, me colocaram sapatos apertados demais e pesos bem menores dos que eu poderia carregar. O que posso fazer eu, além de aceitar as vestes que cada um me designa do parapeito de uma janela? Sou apenas uma sombra àqueles olhos superficiais, humanos. À mim, não. À mim sou vida, sou completa. Sou uma testa ligeiramente molhada por um pingo d'água.

Corações batem lá embaixo. Doloridos ou não, inteiros ou em pedaços, eles batem. É uma sístole/diástole ininterrupta e tão bela que passa despercebida por meus ouvidos humanos. Apenas escuto sombras.

Tenho a certeza de que estou vendo dezenas de pequenos milagres a alguns poucos metros abaixo de mim. Sempre fui cheia de achar milagres em tudo. Eu só não sabia que eram milagres. Chega uma hora na qual paramos de ver sombras e vemos milagres. E não precisei trocar meu par de olhos negros, apenas a perspectiva e o ângulo dos quais as olhava.

A chuva cessa por completo, e a rua, aos poucos, vai ficando deserta. Meu relógio já deu toda uma volta e Beethoven já acalmou meus ouvidos. As grandes poças de água deixadas pela chuva refletem o céu. Não há lua nem estrelas. Há apenas uma imensidão cinza-azulada no chão e no céu.

Não há mais sombras. Há uma moça e o dó sustenido de uma canção. E sua escrita.

Há um parapeito de janela

Há a poesia de tudo o que é. Há milagres.

Se uma gota d'água jamais voltasse a cair, seria a chuva considerada um milagre?