"Sexta"

“Sexta”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

Sexta-feira, manhã nublada, era um daqueles dias em que ela mal acordava e, antes mesmo do café solúvel, deixava-se dissolver pelas poucas páginas do jornal do bairro. Sem pressa, sem ânimo, sem prioridades; entre a letargia e um leve impulso masoquista. Pulava o editorial e as primeiras matérias pagas com fotos de gente familiar ao seu cotidiano. Deixaria pro fim os fragmentos naturalistas que lhe devolvessem algum senso de realidade. Pularia a leitura de seu próprio signo no horóscopo e a de seu próprio obituário se fosse o caso, baixa probabilidade, de que o jornal, desculpando-se alhures, fizesse menção à existência dela ao noticiar seu passamento. Baixa probabilidade, pois jornais de bairro não trazem obituários, tratam a morte pelo seu avesso. A programação cultural então, nem pensar. Ficaria aflita com a idéia de diversão compulsória para mais aquele “f.d.s.”. “Ótimo “f.d.s.”! Ou “Curta bem o seu “find”!, era o que lhes desejariam seus e-mails ao final do dia, referindo-se ao sábadoedomingo, inexorável.

Adorava começar e interromper a leitura de mini-matérias edificantes, novidadeiras de ruminações. Suspendia-lhes qualquer desfecho moralizante, rindo-se da idéia, segundo a qual, escrever é como falar sem ser interrompido. Pois não só interromperia como completaria a leitura com um outro assunto qualquer, buscado a esmo, de trás pra diante, de qualquer jeito. Importava manter a letargia plena de significados desconexos, abertos; e que a manhã se mantivesse nublada, sem chuviscos nem meio-sóis.

Se passava algum desconforto numa vista d’olhos pela coluna social, logo o aplacava, divertindo-se: isso sim é que seria probabilidade baixa! Mas, sabe-se lá, por um capricho de angulação imperfeita, em evento qualquer...e ela ali capturada fora de foco, em movimentação bizarra - um escotoma, ela! O ponto cego de um fotógrafo. Foi quando notou, em ângulo aberto, uma figura conhecida, ainda que anônima. Sentiu o reverso de um encantamento, uma familiaridade brutalizada, esvaziada de toda uma certa magia que, certa vez, a recobrira. A tal senhora que lhe parecia tão enigmática na ocasião em que proferiu uma sentença quase mística, oracular como no horóscopo: - “Cuidado para não perder a sua identidade!”.

Foi numa floricultura do bairro (entrara só por entrar) e, logo ao sair, perplexa com a suposta profundidade da sentença proferida pela cotidiana senhora, notou que a carteira de identidade lhe saltava quase um terço pra fora do bolso traseiro do jeans.

E como o incidental da coisa não lhe chegasse a provocar algum riso, da mesma forma não mais prazer conseguiria com aquela desleitura de jornal de bairro.