"Scarpin" Vermelho
- RM001! RM001!
Putz! É minha senha que está sendo chamada. RM é para Ressonância Magnética. Ontem quando estive neste laboratório, minha senha era MR007 (MR = Marcar Ressonância).
Apresso-me a acompanhar o enfermeiro que me indica o elevador. Entramos. Vejo no monitor: 55. Andar 55? Não pode ser. Será que existe algum prédio nesta cidade com 55 andares? Deve ser algum código.
- Usa “piercings”? Não. Marca-passo? Não. Claustrofóbica? Não. Algum metal pelo corpo? Brinco, anel, pulseira, corrente? Não.
Saímos do elevador. Algumas paredes são de vidro e enxergo pessoas caminhando na calçada da rua. Vejo apenas da cintura para baixo. Ah! Entendi: aquele 55 que vi no elevador não era 55; era SS (Subsolo).
- A senhora coloca essa roupa e esse sapato. Seus pertences devem ser guardados neste armário com chave. Já volto.
Depois da roupa trocada, acompanho o rapaz até outra sala para esperar minha vez de entrar na famosa máquina. A sala tem uma cama e uma “cadeira do papai”. Escolho essa última para sentar. Tudo muito branco e limpo. Na parede um relógio: 07:50 horas. 23ºC. Já estou com 13 horas de jejum. Numa mesinha, um medidor de pressão e um desfibrilador. Será que usam esse aparelho aqui? Alguém passou mal do coração ao usar a temida máquina e tiveram que utilizar o desfibrilador? Hum... Os minutos passam rapidamente. Olho cada detalhe da sala. Estou com frio, mas o termômetro continua com 23ºC. Ergo minhas pernas para cima da poltrona e ali fico encolhida até às 08:25 horas, quando uma moça vem me buscar para encaminhar-me à horrorosa máquina.
- Deite-se aqui em decúbito dorsal, encaixe seu ombro esquerdo aqui. Assim. Pronto! Vou colocar protetores de ouvidos na senhora porque o barulho é muito alto. Aqui na sua mão direita estou colocando uma campanhia. Se quiser que pare o exame, aperte-a com força. NÃO PODE SE MEXER!
- Estou com frio.
Cobre-me com lençol e com um cobertor, das axilas até os pés.
Uma espécie de esteira leva meu corpo para o interior da máquina. “Não devo me mexer”, a enfermeira me disse.
O barulho começa. TUTZ... TUTZ... TUTZ... Contínuo. Fecho os olhos. Não gosto do que vejo. Parece que estou voando no escuro. Abro os olhos. Só vejo uma parte do túnel branco. Não posso virar o rosto para o lado esquerdo ou direito; não posso espichar o queixo para cima para ver até onde o túnel vai ou ver o que tem atrás de mim; não posso baixar o queixo para tentar enxergar meus pés, porque NÃO DEVO ME MEXER. Somente mexo os olhos de um lado para o outro ou para cima e só vejo o teto branco do túnel a cerca de 20 cm do meu rosto. É um espaço muito pequeno. O barulho muda: TROOOM... TROOOM... TROOOM... Forte e contínuo. Não gostei dessa primeira impressão. Aumenta a velocidade dos batimentos cardíacos. Meu peito sobe e desce rapidamente, acompanhando a respiração. NÃO DEVO ME MEXER, mas não quero mais ficar aqui neste lugar apertado! Quero sair! Parem com essa merda, por favor! Vou apertar a porra desta campanhia e acabar com esse exame! Não quero mais! Que vontade de gritar, mas não posso mexer a boca! Tenho que acalmar-me. Porque meu coração e respiração estão tão agitados? Estou assustada! Sou claustrofóbica e não sabia? Como poderia saber?! Nunca havia ficado presa num caixão! Pelo menos aqui tem ar para respirar. Vou apertar a campanhia! Tenho que me acalmar! Se apertar, será que as enfermeiras vêm salvar-me rapidamente? Se apertar, interrompe o exame e terei que retornar para refazer essa merda. Já sei: vou rezar. Meu Pai Querido, por favor, faça com que me acalme e não passe mal dentro desta maldita máquina. Amém! Nunca ouvi falar de alguém que tenha morrido por fazer ressonância magnética. Todo mundo faz isso, caceta! O barulho muda novamente: BIP... BIP... BIP... A respiração volta ao normal. Ah que bom! Obrigada, Senhor! Resolvo cantar: “Mãe do Perpetuo Socorro! Venho a Ti e recorro. Vem ó Mãe me valer! Mãe vem me socorrer...”. E agora? Já rezei e cantei. O que mais posso pensar? Não quero lembrar que estou nesta medonha máquina, fazendo esse exame horrível, olhando para um teto branco, medindo 20cm X 20cm. Tenho que relaxar. Já sei: vou pensar no livro que estou lendo. Não consigo lembrar o título e nem o autor. Sei os nomes dos personagens: Clarinha que é noiva do Adriano, que é irmão do Fabrício, que é apaixonado por Selena, que é mãe da Selma e do bebê que não recordo o nome. Como é o nome da mãe da Clarinha? Não importa. O que interessa é que estou conseguindo relaxar. TUTZ... TUTZ... TUTZ... E essa porra deste exame? Não vai terminar nunca? Estou com vontade de chorar. Retornou o desejo de gritar mandando parar tudo. Quero ir embora para minha casa! Não vou deixar me abater. Necessidade louca de mexer o dedão do pé, as mãos, soltar a campanhia. Não vou me mexer, para não ter que refazer esta porcaria. Tenho que pensar em outra coisa. Quais os livros que tenho na estante? Qual será o próximo livro que lerei? Vou ler “A Travessia”, mas não lembro quem é o autor, parece-me que começa com “Y”.
Acho que meu ombro não está bem encaixado. Vou aproximá-lo alguns milímetros do aparelho.
- Senhora! Por gentileza! Não se mexa! – grita a voz da médica.
- Fudeu. - sussurro.
- A senhora mexeu novamente. Não se mexa, por favor. Estamos quase no final do exame. Já vai acabar!
Ah! Que frase maravilhosa de se escutar: “já vai acabar”! Concebo em minha mente: já vai acabar – já vai acabar – já vai acabar. Estou aqui há quanto tempo? O mundo lá fora continua e aqui estou presa nesta máquina cruel, sem poder me mexer e escutando este barulho dos infernos! O que vou pensar agora para distrair-me? Vou contar os BIPs. Contei 60. 60 segundos? Será que é uma sequência de 1 minuto para TUTZ-TUTZ-TUTZ, mais uma sequência de 1 minuto para TROOOM-TROOOM-TROOOM e mais uma sequência de 1 minuto para BIP-BIP-BIP? 1 minuto que parece 1 hora! Por quanto tempo essa máquina vai ficar “escaneando” meu ombro esquerdo?
De repente os ruídos diminuem de volume até cessarem por completo. Uma luz se acende e a esteira com meu corpo saem da máquina dos infernos.
- Tudo bem, senhora?
- Tudo ótimo! Terá que repetir ou deu tudo certo?
- Tudo certo. A senhora pode trocar de roupa naquela sala, aguardar um pouco e já lhe entregarei os resultados.
Troco de roupa, sento-me na cadeira do corredor e aguardo o resultado. Na parede, um aparelho para os pacientes darem notas aos funcionários pelo atendimento. Não opino. Levanto-me. Olho o relógio. 14 horas de jejum.
- Moça, vou à outra sala comer umas bolachinhas.
- OK.
Só de raiva vou beber todo o café e comer todas as bolachas! Tomo três cafezinhos e como cinco bolachas de água e sal.
- Senhora, nesta sacola estão seus exames e um CD. Assine aqui, por gentileza, confirmando o recebimento destes. Esse outro papel aqui, é um protocolo para a senhora retirar o Laudo Médico daqui três dias.
Saio do laboratório pela escadaria que me leva do subsolo ao térreo; não quis entrar no elevador. Feliz por sair da máquina opressora, mas para melhorar e ficar saltitante de alegria, somente entrando agora numa sapataria e comprando um lindo “Scarpin” vermelho. Eu mereço!
Simone Possas Fontana
(escritora gaúcha de Rio Grande-RS,
membro da Academia de Letras do Brasil/MS, ocupando a cadeira 18,
membro correspondente da Academia Riograndina de Letras,
autora dos romances MOSAICO e a MULHER QUE RI,
formada em Letras, contista da Revista Cultura do Mundo,
blog: simonepossasfontana.wordpress.com)
Minhas Anotações:
- Conto escrito em julho/2014.
- Publicado no blog: simonepossasfontana.wordpress.com