Compromisso no leito de morte
Sol a pino, terra seca e rachada porque há muito não bebia da água da chuva. O milharal não vingara. Desolação. Foi quase sempre assim a vida de Derbal e Cremilda. Aquele ano a seca castigou mesmo, coisa horrível!
O casal conversava:
- Acho que não vamos aguentar mais dois meses sem chuva. As três vacas já quase não se sustentam em pé. Temos que sair daqui. Venderemos o que nos resta e iremos para a cidade, disse tristemente Derbal.
- E sua família, também vai? Perguntou Cremilda. Ela sabia que isso seria impossível, pois era muita gente. Cinco irmãos, duas mulheres e três homens, ela própria, a mãe viúva e cinco netos pequenos, duas meninas da irmã mais velha e três meninos de Derbal.
Ficou acertado entre marido e mulher que Derbal iria primeiro, enquanto Cremilda tentaria vender o que restava de animais naqueles dois hectares de terra, três vaquinha, dois carneiros muito magros e uma dezena e meia de galináceos, que vinham resistindo até agora beliscando as palhas do milharal que não vingara. Com o apurado a família procuraria se sustentar até a mudança para a cidade grande. A terra não seria vendida, cuidaria dela um parente que insistia em permanecer ali, pois não se achava com coragem de abandonar a terra que sempre pertenceu à família, desde a época dos tataravôs. Tinha também o problema da idade.
Tudo acertado, Derbal partiu para o desconhecido, pois nunca estivera na capital. Desconhecia a existência de parentes e amigos em Fortaleza. A expectativa era conseguir emprego o mais rápido possível. Embora não sabendo fazer mais nada do que cuidar de roça, ele se aventuraria na construção civil, como ajudante. Era forte e acostumado ao trabalha pesado. Sempre trabalhara de sol a sol. Não teria problema, pensava o retirante da seca, disposto a conquistar a cidade grande.
Três meses depois, faminto, magro, fraco, dormindo na rua e sem ter conseguido trabalho Derbal foi levado ao hospital público para exames e tratamento, pois se apresentava febricitante. O diagnóstico foi pneumonia aguda. Durante estes três meses de ausência jamais entrara em contato com a família que deixara para trás. A vergonha de voltar para casa e ser humilhado pela família e pelos conhecidos o impedia de retornar à sua pequena cidade.
A equipe médica do hospital, preocupada com a saúde de Derbal, procurou comunicar-se com a família do internado. Depois de várias tentativas o irmão mais velho foi contatado e intimado a comparecer ao hospital com urgência. Dermeval, substituto do pai, com a morte deste, na criação dos irmãos, trinta anos, mais que angustiado, pois não deram muitas explicações sobre o estado de saúde do irmão, juntou o dinheiro que tinha, conseguiu emprestado com amigo pequena mala e tomou o destino de Fortaleza, cidade que também nunca lá estivera.
Doze horas de viagem, parte em terra batida e outra em asfalto pessimamente conservado, o irmão do retirante da seca avistou as luzes do amanhecer da cidade grande. O desembarque na rodoviária foi tranquilo, ele sabia ler um pouco e não era tímido, foi logo perguntando sobre a parada do ônibus que o levaria até ao Hospital Gonzaguinha. Curioso, Dermeval se assustava com a quantidade de carros e gente que via através da janela do ônibus. Não entendia toda aquela correria. Em sua cidade tudo era mais tranquilo – pensava ele. Na porta do hospital parou abismado, como iria encontrar o irmão naquele prédio tão grande e cheio de gente a entrar e a sair dele? - perguntou para si mesmo.
Avistando um senhor fardado, um segurança, dentro de uma cabine, o recém chegado a ele se dirigiu:
- Estou procurando o meu irmão, ele esta internado aqui – falou Demeval.
- Como é o nome dele? Idade, nome da mãe – perguntou o segurança já consultando o computador.
- Derbal Souza Brito, vinte e oito anos, mãe Josefina Souza Brito, disse Dermeval agachando-se para falar pelo orifício aberto no vidro blindado que separava o segurança e seu interlocutor, que lhe pediu documento de identidade, para assegurar-se de que as informações passadas eram verdadeiras.
- Dirija-se àquela porta e identifique-se à recepcionista – apontou o segurança para o lado de uma grande porta de vidro, entregando o documento de volta.
Já dentro da sala de recepção, Dermeval se dirigiu à bela moça sentada atrás de uma mesa sobre a qual havia um computador.
- Bom dia senhor, seu nome e o nome do paciente?
Demerval repetiu o que já havia dito ao segurança. A recepcionista entregou-lhe pequeno papel contendo a palavra VISITANTE e pediu ao homem que o afixasse junto ao bolso da camisa. A recepcionista chamou a Dra. Elizabete, enfermeira, pediu para que ela levasse o senhor até a ala 5b e o apresentasse ao Dr. Eduardo. Sem dizer uma só palavra e sempre com a pequena mala à mão, Dermeval, já bastante cansado, acompanhou a mulher vestida de branco até ao local do consultório do médico responsável pela unidade
Depois das implicações do pneumologista, Dermeval ficou sabendo que a saúde do irmão estava bastante comprometida, que ele contraíra uma doença chamada pneumonia, devido a sua subnutrição e por ter vivido nos últimos meses sob precárias condições de higiene e a falta de tratamento adequado. Que estas condições o levaram ao estado de confusão mental, com perda do apetite, desânimo e fraqueza, fazendo sua saúde piorar acentuadamente. Dermeval ouvia tudo aquilo sem entender nada. Confuso ele só queria saber do irmão, queria vê-lo a qualquer custo.
- Você tem dez minutos para falar com ele, disse o médico. Ele se encontra na UTI e não há esperança de ele continuar vivo até amanhã, completou o Dr. Eduardo.
Esta fala Dermeval entendeu muito bem, o irmão estava morrendo e ele precisava falar-lhe com urgência, antes que acontecesse o pior. Era para dar-lhe notícias da família, da mãe e dos filhos, que já não estavam sofrendo tanto, pois a chuva aparecera por lá e tudo melhorou. Com essas notícias o irmão poderia resistir à morte - pensava Dermeval.
Levado ao encontro do irmão, o recém-chegado percebeu que era pouco provável que ele superasse aquele estado, o fim estava próximo. Acocorou-se e aproximou-se mais ainda do irmão enfermo:
- Irmão, sou eu, falou baixinho Dermeval.
O irmão abriu os olhos e esboçou leve sorriso. Pegou na mão daquele que o estava visitando e o puxou mais para próximo de si.
- Irmão, vou pedir um favor para você. Quero que você case com a minha mulher e tome conta de meus filhos, sussurrou o irmão desditoso.
- Você não vai morrer irmão, estão todos esperando por você lá na roça, tudo melhorou por lá, a chuva caiu, o solo foi molhado, deu para recuperar um pouco da lavoura e a colheita do feijão vai bombar.
- Eu sei que não passo de hoje, quero que você prometa o que estou pedindo.
- Tudo bem irmão, caso você nos deixe, eu casarei com a cunhada Cremilda, sua mulher, confirmou Dermeval bastante constrangido.
Ao ouvir a confirmação do irmão, Derbal respirou fundo, distribuiu um sorriso forçado para o irmão, fechou os olhos para nunca mais abrir.
Depois do enterro, acontecido no cemitério da cidade de origem do defunto, Dermeval falou para a cunhada da promessa que havia feito ao irmão. Um sorriso desconfiado, mas expressando alegria, brotou nos lábios da cunhada. Para desfazer a impressão de concordância, o cunhado, mais do que depressa procurou dizer, sem querer melindrar a cunhada, que ele não poderia cumprir a promessa feita, pois tinha dois filhos com uma mulher, da qual a família não tinha conhecimento. Não era deixá-los desamparados.
O irmão mais novo dos oito de dona Josefina, que ouvira toda a conversa entre irmão e cunhada, se se aproximou de Cremilda e com voz impostada, exclamou: eu caso com ela! Eu vou cumprir a sua promessa. Não vou deixar meu irmão morto se consumir onde ele estiver, completou Deraldo.
Deraldo, dezoito anos, dez mais novo que Cremilda, casou-se com a cunhada cinco meses após a morte do irmão Derbal. Na verdade ele, nesse dia, constituiu uma família, pois herdara três enteados. Foram felizes? Não tenho esta informação ou é assunto para outro conto.
Gilberto Carvalho Pereira
Fortaleza (CE), 7 de dezembro de 2014