Derrotado
Estávamos prontos para entrarmos no ar, as duas e eu. Ana e Renata eram as principais apresentadoras de telejornais do país, as melhores. Eu? Havia recebido a oportunidade, e mesmo gostando muito mais da escrita e do rádio, aceitei o desafio. É verdade que em muitos momentos não entendia direito o que estava fazendo lá, mas era um ótimo trabalho, dava projeção, também construí minha história na Tv. Modéstia a parte, sempre fora um bom jornalista, seguro, convicto e senhor de mim em todos os momentos em que estava no vídeo.
Nosso telejornal era diferente, talvez por isso fosse tão aclamado e escolhido pela maioria. Fazíamos todas as leituras das notícias nos próprios jornais impressos, citando os mesmos e mostrando para os telespectadores. Em muitos momentos líamos a mesma notícia em dois ou três jornais diferentes, comparando as abordagens e analisando as diferentes linhas editoriais. Mesmo parecendo irreverente e diferente, tudo era muito formal e o script era seguido à risca.
Na Copa do Mundo no Brasil tivemos exemplos bem interessantes de linhas editoriais diferentes. Nos eventos, como as Fanfests que precediam e sucediam os jogos algumas mídias noticiavam: “A festa começa às 15 horas e após o jogo continua com muitos shows, é muita diversão e alegria para os torcedores que vão festejar até altas horas”. Outros davam a mesma notícia por outro viés: “A bagunça começa duas horas antes do jogo e continua após, muito barulho e incômodo para os moradores da região, que não conseguem dormir, e ainda por cima precisam conviver com a sujeira que fica após uma noite de farra”. Uns apoiam e outros não, de acordo com o grau de interesse.
No nosso programa, os jornais e revistas não tinham objeção quanto a forma de trabalhar, a bem da verdade eram até patrocinadores, pois as respectivas marcas apareciam o tempo todo. Mas naquele dia algo deu errado. Ana, com sua desenvoltura e competência de sempre leu a primeira manchete na abertura do programa: “Seleção Brasileira dá vexame no Mineirão”. Em seguida era minha vez de falar: “Perplexos, assim todos ficaram, perplexidade total”. Só que a palavra “perplexos” não saia, não conseguia falar, comecei a gaguejar, falei “parpressos” “perpressos” e um monte de outras coisas sem pronunciar do jeito certo. Quando chegou em “perplexidade” então, garrou mesmo.
As tentativas de tentar ler aquela manchete no jornal causou um mal estar geral, tudo ao vivo, Ana olhava para mim e para câmera enquanto sorria sem graça. Renata esperava para ler sua notícia, não sabia se me interrompia ou continuava na espera sem fim. Após quase um minuto para falar uma simples frase, comprometer e desestabilizar toda a equipe, Renata finalmente entra: “Brasileiros choram por sonho que chega ao fim”. Cada um dos três leu mais uma chamada de abertura, todas alusivas a tragédia da seleção, sendo que mais uma vez não consegui bom resultado. As palavras não saiam, a respiração ofegava e a garganta estava seca. Isso nunca acontecera. Veio o intervalo para os comerciais.
Os câmeras me olhavam como se tivessem visto um Ovni, como nos bons episódios de Arquivo X. O Diretor vociferava palavrões ignorando a presença de várias mulheres. Ana, mais educada oferecia ajuda e perguntava se eu estava bem. Enquanto Renata gritava quase tão alto quanto o Diretor, que eu deveria ser tirado do ar senão “queimaria o filme” dela. Como persistente que sempre fui, decidi que iria continuar de qualquer jeito, e me recuperaria em seguida.
Na volta, graciosamente, Ana fez a leitura do lead (primeiro parágrafo contendo as informações mais relevantes do fato) do principal jornal, perfeita como sempre. Não tive sorte, o meu texto estava em letras menores que o habitual e para piorar estava sobre uma foto de um jogador deitado aos prantos no gramado do estádio. Constatei que a Lei de Murphy existe mesmo. Ao vivo, diante de milhares de pessoas, pedia para que trocassem meus óculos já que tudo se embaralhava no jornal. O desespero era grande, lia no máximo três palavras do texto e tudo acabava se misturando novamente.
Quase que por impulso, Renata tomou o jornal da minha mão e me passou o dela. De nada adiantou, eu simplesmente não conseguia ler nada. Em tentativas desesperadas, aproximava o jornal bem próximo dos olhos chegando a encobrir o rosto diante das câmeras. Assim como o jogador de camisa amarela do jornal, que agora estava com a Renata, comecei a chorar copiosamente. Ana me olhava com pena, eu agora tentava contar a notícia, aos prantos, ao invés de lê-la. Em vão. Ao vivo, Renata saiu e foi embora dizendo que o profissionalismo ali era zero. Sérgio, vermelho de raiva gritou ao fundo: “cooooorta”.
Minha carreira estava acabada, sem dúvida o maior vexame da história do telejornalismo e da televisão. Sabia que ficaria marcado para sempre assim como todos os meus colegas da emissora, especialmente os que atuavam comigo. No momento em que o Diretor veio com tudo para cima de mim, comecei a ouvir as notas suaves de uma melodia vinda de algum lugar distante. Era a música do meu celular despertando-me para mais um dia de trabalho às seis da manhã. Qualquer tipo de som de despertador, independente de como seja, me incomoda profundamente. Não nesta manhã de quarta feira. Meu maior vexame da história havia ficado em algum lugar na noite de sono mal dormida. Ou será que aconteceu? Passarei na primeira banca para ler as manchetes dos jornais.