FREE

Saí de casa com uma única intenção: ir à padaria comprar quatro pãezinhos e dois maços de Free, a liberdade que me prendia. Atravessei o portão da vila e o céu de dezembro me recebeu inteiro prometendo um verão escaldante. Aproveitei o embalo e respirei fundo, esquecida das tarefas mesquinhas deixadas pra trás: almoço por fazer, roupas no varal e escolher o guarda-roupa para a reunião à tarde. Distraí-me contando as árvores da calçada que foram plantadas no ano passado e já nos brindavam com cachos e cachos de floração arroxeada, lindos. Seguia tranquila e já próxima ao mercadinho da esquina, lembrei que faltavam algumas frutas e legumes. Entrei e estava razoavelmente vazio. É daquele tipo de comércio onde todos se conhecem pelo nome; dos funcionários aos clientes. Cumprimentei o gerente que tem um lugar cativo numa bancada perto da entrada. Digiri-me à seção de hortifruti e rapidamente escolhi o que precisava. Pouco, pois ali o preço exorbita, aproveitando a facilidade e a proximidade da clientela.

Enfim, a fila do caixa. Três pessoas na minha frente. Espero. Enquanto isso, uma voz calminha comentava: tão cedo e já tão quente. Virei-me para identificar a figura por trás da voz e uma senhorinha de baixa estatura, mais baixa até do que eu - vi que é possível - me sorriu mostrando os poucos dentes que restavam. Nunca havia visto um sorriso tão franco como aquele. Falante, era do tipo que contava a vida inteira em menos de dez minutos e assim, fiquei sabendo de onde trabalhou, de como conheceu o marido, de onde morava e de quantos anos tinha. Nessa parte, seus olhos brilharam ao me apresentar a pergunta: quantos anos você me dá, mocinha? Arrisquei uns 80, mas temendo ser menos porque, de fato, não parecia. Pois bem, sacou sua identidade e me mostrou com orgulho o documento onde constava a extraordinária e inacreditável data - 13/05/1891. 103. Cento e três anos! Dizia alto e com mais orgulho ainda: meu filho mais velho tem 81! Mas confessou-me uma tristeza. Uma vontade insistente em morrer e que fosse dormindo, sem sentir. Perguntei o motivo e respondeu-me que estava cansada de ir a funerais de entes queridos. Sua expressão eufórica se transformou ao relatar isso. Deixei que ela retomasse o papo, no tempo dela. A fila andava devagar porque, mercados assim sempre rendem conversas entre as operadoras de caixa e clientes. Uns comentando sobre o tempo, outros reclamando do preço, outros trocando receitas...

Refeita, dona Nice - era assim que gostava de ser chamada - contou-me da última perda familiar. Sua irmã caçula, embolia pulmonar. Morrera no colo do marido a caminho do hospital, dormindo. Fumava muito, dizia. Fumava, não. Comia cigarros! As últimas frases me incomodaram. Não que desconhecesse os malefícios do fumo mas dito assim e justo naquela hora... Confessei-lhe meu vício. Ela me olhou com um arzinho de doce censura dizendo: mocinha, não faça mais isso. Já fumei também e sofri os seus efeitos. Parei. Pare também.

Baixei minha cabeça. Não por vergonha mas para não encarar aquele rostinho tão meigo e tão vivido e tão cheio de razão.

A fila andou mais um pouco e chegou a minha vez. Cedi a ela que agradeceu. Carregava alguns biscoitos, macarrão, duas latas de sardinha e três pacotinhos de pó para refresco. Disse que não era para ela. Ia levar aos seus amigos do Clube dos Paraplégicos que fica ao lado da padaria. Era para lá que se dirigia todos os dias pela manhã para distraí-los e distrair a sua própria solidão. Pagou a conta e antes de sair, deu-me um abraço calmo e um beijo demorado na testa. E ao pé meu do ouvido, disse: se quer parar de fumar, basta não comprar. E se foi sob meu olhar atônito e admirado. Passei meus itens pelo caixa, coloquei-os na sacola e paguei. Saí do mercadinho em direção à padaria. De lá, trouxe um pacotinho com quatro pãezinhos. Hoje, a liberdade não foi comprada. Hoje, não.

FREE - Lena Ferreira - nov.14