550-BOLIM-BOLACHO
Dona Hermínia era uma excelente quituteira, talvez a melhor na cidade e, talvez, na região. Enquanto o marido se cansava na lida da olaria, ela se desdobrava na cozinha e no grande forno anexo, abusando da farinha de trigo e dos ovos em abundância colhidos no galinheiro com mais de cinqüenta galinhas poedeiras. .
Viviam dona Hermínia e seu Afonso, mais os três filhos homens e as duas meninas, numa chácara pequena, situada cerca de dois quilômetros da cidade. Mesmo sendo pequena, coisa de três ou quatro alqueires, a chácara tinha de tudo, ou quase tudo para a sobrevivência da família.
A olaria, que ocupava todo o tempo do marido, fornecia rendimento para as compras no comércio da cidade. Ela cuidava, com a ajuda dos meninos e de um velho agregado, da horta, na qual colhia legumes e verduras para consumo e, conforme a safra, até para vender na cidade. O pomar, com grande variedade de fruteiras, era a delícia dos sobrinhos, nas tardes de domingo. Um moinho de triturar milho à beira do córrego fornecia a matéria prima para as broas, bolos e quitandas de fubá.
E as quitandas... Ah, as quitandas de dona Hermínia eram famosas e certamente constituíam o atrativo para as visitas dos parentes, aos domingos, que enchiam a pequena casa e extravasavam para o pequeno o pátio ao lado da casa, com bancos de madeira e sombreado por uma parreira sempre verdejante.
Tanto ela quanto o marido recebiam de braços abertos a parentalha, os irmãos e irmãs, cunhados e cunhadas, com respectivas famílias. Que, eventualmente, traziam amigos, para uma tarde de conversa fiada e apreciação dos pães, dos bolos, dos biscoitos e dos doces fresquinhos, pois todos os sábados ela forneava.
As crianças sumiam pelo pomar, ou faziam incursões pela olaria, ou iam até o córrego que passava mansamente no final da propriedade.
Os elogios era muitos e vinham de diversas formas.
— Hummm! Esta broa está ótima.
— Experimenta este bolo de canela. Que delícia!
— Você devia fazer quitanda pra vender na cidade. — Um irmão aconselhava.
— Que nada. Fica assim mesmo, que está muito bom. — Falava outro, com medo de perder a boca-livre de todos os domingos.
Duas cunhadas tinham inveja de dona Hermínia, mas eram as primeiras a chegar e as ultimas a sair das visitas semanais.
Carlos, irmão de Afonso, muito gaiato, e que vivia pregando peças nos garotos, sobrinhos ou não, cantava uma musiquinha toda vez que dona Hermínia estendia a toalha e começava a colocar os quitutes sobre a mesa:
— Bolim, bolacho, bolo encima e bolo em baixo... —
Eram felizes e nem sabiam. No outro lado do mundo, a guerra começara, mas ninguém ali poderia imaginar como seriam afetados por ela.
A farinha de trigo, que vinha da Argentina, começou a ficar cara, o sal e o açúcar que vinham do nordeste em navios não só encareceram no preço como chegaram a ser racionados.
Dona Hermínia ficou atribulada. Não tinha mais a abundância de farinha para as quitandas e bolos. Mas, mulher de expediente e boa conhecedora das artes de forno e fogão, passou a fazer as quitandas com fubá e polvilho de mandioca.
O forno passou a ser completado com broas, bolos e outras quitandas de fubá e polvilho. Como o açúcar era pouco, as quitandas ficaram menos doce, e uma delas nem açúcar levava. Era o pau-a-pique¸ massa de fubá bem simples, assada em folha de bananeira. Muito seca, o nome era uma alusão às casas de pau-a-pique, construídas com barro e talas de bambus, comuns no interior, principalmente para os colonos e agregados das fazendas.
O pau-a-pique de fubá, água e pouca gordura, era terrível: seco, duro, precisava de muito café para descer. Os garotos detestavam e parecia castigo ter de comer o tal de pau-a-pique.
Mas a mão de quituteira de dona Hermínia era tão boa, que as quitandas de fubá eram imensamente apreciadas pelos visitantes dos domingos. E numa daquelas tardes veio o Zé Camacho, dono de uma padaria na cidade, que ficou seduzido pelas gostosuras da quitandeira.
— Sabe, não tenho quem faça essas quitandas de fubá na minha padaria. A senhora podia me fornecer a receita...
— Ah, seu Zé, não tem receita, não. Vou fazendo sem medida, um prato de fubá, alguns ovos, um pouco de gordura...não faço nada de medida nem de receita, não senhor.
— Então a senhora podia fazer pra suprir minha padaria.
A proposta, a principio, foi recusada. Mas os tempos estavam também bicudos para o marido, fornecedor de tijolos para as construções que haviam diminuído bastante nos últimos tempos. E as crianças, as maiores já freqüentando a escola, demandavam mais roupas, melhores calçados, cadernos, livros.
Até que, de acordo com o marido, Dona Hermínia procurou Zé Camacho para acertarem o fornecimento de quitandas.
Foi um negócio que deu certo para as partes: as quitandas eram vendas assim que chegavam à padaria e Zé Camacho, que pedira um fornecimento por semana, passou a pedir duas, três, por semana, e, finalmente, queria quitandas de dona Hermínia todos os dias.
— Não, assim não agüento. Vamos ficar no fornecimento três vezes por semana. — propôs, finalizando, a competente dona Hermínia.
O que foi bom pra Dona Hermínia e Zé Camacho, foi péssimo para os visitantes dos domingos. Exausta com as fornadas das terças, quintas e sábados, não tinha disposição para fazer as quitandas para os visitantes de domingo.
— Cês me desculpem, mas é que nesta semana tive de fornear para a padaria e não deu tempo para fazer nada para vocês. — Ela tentava se justificar.
— Mas dona Hermínia, a senhora não tem de dar satisfações para ninguém. — Disse o Carlos, o cunhado que cantava a musiqueta do bolim-bolacho...
Os visitantes das tardes de domingos foram rareando, coisa natural, pois muitos iam lá mais pelas quitandas de dona Hermínia do que pela amizade sincera.
Dona Hermínia fichou chateada, mas o marido deu-lhe apoio:
— Ora, mulher, se eles vinham aqui por causa das as quitandas, então é melhor que não venham mesmo.
Carlos permaneceu fiel, continuou as visitas das tardes de domingo. Ainda cantava a musiquinha, só que modificada, de acordo com os novos tempos:
— Bolim, bolacho,
Quem quer bolo da Hermínia,
Vá comprar no Zé Camacho.
ANTÔNIO GOBBO
Belo Horizonte, 22 de maio de 2009
Conto 550 da Série Milistórias