Ducha sapateiro

Ducha talvez se chamasse Cândido, mas não é mais que uma suposição, baseada no fato de que u`a provecta dama da mesma Velha, já no entardecer de seus anos - que beirariam a centena - chamada afetuosamente era de Canducha. Dedução esdrúxula, ou esdruxa? Duxa pra lá.

Voltemos ao Ducha já já. Sapateiro de ofício. Como uma boa dúzia de confrades na Velha

Serrana, que tinha até, na confraria, o seu sapateiro-empreendedor, self-made shoemaker, que havia transformado sua sapataria em fábrica de calçados. Santa Helena ela, e ele,

Ósto. Praquê escrever certo, da forma americana, se todo mundo ia falar mesmo Ósto?

Era Ósto, e casado com a Preta do Pedro Valentim. Que de preta tinha a morenice

acentuadamente sapoti.

Mas e o Ducha? Chegava a ser amarelo. Não sei se condição hepática ou se daqueles

anos todos encafuado naqueles porões que outrora abrigaram uma fábrica de móveis

e, ultimamente se converteram em modesta sapataria. Mas, pensando bem, aquele

amarelão não podia ser só falta de sol. Afinal o Ducha era entusiasta do futebol

e não havia domingo a que faltasse a um jogo, ou treino que fosse. E costumava acompanhar o seu querido Oito de Maio nas suas excursões em cidades vizinhas. E torcia, se contorcia, palpitava e sua opinião se valorizava.

Não chegava a perder missa por causa do futebol. Mas estou certo de que pecasse seria

na cobiça por vitórias do time ou no esculacho que passava nos pobres juízes ou adversários. E compensava tudo na confissão regular das primeiras sextas feiras de cada mês. De que era freguês.

Mas o resto era bater sola. E fazia manualmente os seus sapatos, com um par de aprendizes mal-ajambrados. E era como ganhava a vida. Era tempo em que as pessoas mandavam fazer sapatos. Contraforte, cabedal, atacador eram expressões do dia a dia, entre sua freguesia. Ainda que tanto sapato feio dali saía.

Lembra-me um par deles, feito sob encomenda para meu irmãozim, o Beu. Praenfrentar os pedregulhos no caminho da escola. Era uma miniatura de sapato de gente grande. Caprichado, mas tortinho, mal-nivelado. Enquanto os pés ali entravam, o sapato durava.

Das mãos de Ducha veio também meu par de chuteiras. Uma Nike flintstônica. Mais dura que durável.Vai ver que é porisso que não fiz a carreira sonhada no esporte bretão.

Já o Beu não se queixava. Quebrou muita canela em pelada.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 26/11/2014
Reeditado em 21/07/2022
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