549-QUEM NÃO TEM CABEÇA...-Drama de estudante
QUEM NÃO TEM CABEÇA TEM QUE TER PERNAS
Como era longe o Ginásio Serrano!
Subindo a Avenida Rui Barbosa, na direção do campo de aviação, eram bem uns três quilômetros do centro da cidade. Para Mirinho, ainda era mais longe, pois ele morava no outro lado, perto da estação da estrada de ferro. Digamos, uns cinco quilômetros, quase uma légua!
Trecho que o garoto fazia todos os dias, saindo quase uma hora antes do início da primeira aula, que era às sete e trinta. Em algumas manhãs, pegava uma carona com Pedrinho Mentira, que entregava pães pela cidade. Sua charrete tinha um baú grande atrás, onde eram colocados os pães que iam sendo entregues de porta em porta, ou melhor, de janela em janela, nas frias manhãs até mesmo no tempo do calor. Como Pedrinho fornecia pão para o Ginásio, quando Mirinho ia com ele, chegava antes da sete horas, com tempo até para recordar a lição de casa.
Ah, mas um dia inda vou ter uma bicicleta só pra vir pro ginásio — sonhava Mirinho.
Andar de bicicleta ele já sabia, tinha aprendido com as velhas bicicletas da bicicletaria do seu Estevão, quando ele ficava tomando conta em ocasiões que o velho tinha de ir à cidade. A bicicletaria ficava ao lado de sua casa, e ele já tinha até escolhido, para comprar, uma da marca Phillips, bem conservada, com alguns arranhões no guidão e no cano do selim.
— Para se sonhar, Mirinho. — A mãe dizia. — Seu pai num ganha tanto assim que dá pra comprar bicicleta.
Era verdade. O pai, que tinha uma sapataria e vivia de consertar sapatos, colocando saltos novos e meias-solas, mal fazia para a comida. A sorte é que não precisavam pagar aluguel: viviam na casa que fora do avô e a sapataria era num cômodo da casa, com uma porta estreita aberta para a rua.
Waldomiro estava na segunda série do ginásio. Outra grande sorte da família era a bolsa de estudos que ele ganhara da prefeitura, devido ao primeiro lugar no curso de admissão ao ginásio, que classificava os meninos para a primeira série. Não fosse isso, Mirinho nem poderia continuar estudando.
— Vou ser dentista. — Anunciava com a boca cheia. Por isso, estava no ginásio e se esforçava para chegar sempre antes de começar a aula. Se chegasse atrasado, por poucos minutos, perdia a primeira aula. O Irmão Libânio, o “disciplinário” era rigoroso nos horários.
Mirinho tinha inveja — sim, inveja — do Zé Luiz, do Vitor e do Carlinhos Pampa, que tinha bicicletas e iam com elas ao ginásio. Filhinhos-de-papai, de advogados e médicos, gente rica, que podia dar bicicletas aos filhos.
Um dia ainda fico que nem eles, vou pro ginásio de bicicleta.
Irmão Gonzalez era um espanhol autoritário, que lecionava quatro matérias na segunda série, ano de 1948, época deste relato. Rigoroso no cumprimento das tarefas para casa que determinava aos alunos, exigente no comportamento, na disciplina e até no estado de limpeza dos uniformes. Difícil de ser satisfeito, raramente dava nota dez. Não aceitava desculpas, e mentiras, então, nem falar!
Passava muito trabalho, exercícios e pontos para serem estudados em casa. A cobrança, nos dias marcados para entregas das tarefas era rigorosa ao extremo. E as desculpas pouco adiantavam.
Por diversas vezes Mirinho tinha visto colegas serem enviados para casa, em busca de exercícios ou tarefas que tinham sido esquecidos.
— Professor, esqueci o caderno de exercícios...
— Vai buscar. E volta antes de terminar a aula. — E acrescentava um ditado popular propício à ocasião, como : Vai num pé, volta no outro ou vai no raio, volta no trovão.
Na maioria das vezes o esquecimento era mentira, o aluno não tinha mesmo feito o para casa e então a coisa se complicava, pois o aluno tinha de ir até a casa, fazer o dever, de qualquer forma, e voltar ainda em tempo de pegar a aula em andamento.
Mirinho era esforçado, estudioso e atento. Até então, nunca perdera notas ou fora censurados por essas questões. Mas tudo tem a primeira vez. E foi numa aula de desenho que verificou o esquecimento. O caderno de cartografia, com os mapas desenhados com cuidado, ficara em casa.
— Não interessa, Waldomiro. Vai buscar o caderno.
— Professor, moro lá perto da estação da estrada de ferro, num vai dar tempo de voltar...
— Pois então, vai num pé e volta no outro. Chispa!
Ao passar pela carteira do Vitor, pede-lhe:
— Me empresta sua bicicleta.
— Cê bobo, sô. Si vira.
Que porcaria! — pensa, ao dirigir-se à porta.
Antes de sair, ainda teve de ouvir o dito do Irmão Gonzalez, que lhe soou aos ouvidos como uma praga ou maldição:
— Quem não tem cabeça, tem que ter pernas.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 18 de maio de 2009
Conto # 549 da Série Milistórias