Os amigos
Éramos todos habitantes do Edifício São Vito, localizado na Avenida do Estado, em frente ao Mercado Municipal, separado apenas pelo Rio Tamanduateí. Digo habitávamos. porque o edifício parecia uma cidade, tal a quantidade de moradores, mais de três mil, que nele vivia. Isso sem contar com os frequentadores eventuais. Cada apartamento era composto de um vão, que poderia ser dividido em sala e quarto por uma cortina ou outro material qualquer, e um banheiro. No ambiente destinado à sala havia um espaço recuado com uma pia e um armário sob a pia. Servia como cozinha. Acho que não tinha mais que trinta metros quadrados. Era uma quitinete e a nossa ficava no vigésimo quarto andar. Nunca contei quantas quitinetes haviam por andar, mas sei que eram mais de vinte. Para nos servir havia três elevadores. Na parte térrea um bar, que além de bebida oferecia sanduiches, ovos cozidos coloridos, mortadela, queijo, bolos, doces etc. Local de nosso café da manhã e nos domingos e feriados, do nosso almoço. À noite, havia muita gente no local e a presença da polícia era quase constante, pelas confusões dos bêbados, mas, raramente alguém ia preso. Não era como hoje.
Os meus vizinhos do apartamento do lado esquerdo, quatro, eram de Atibaia, cidade do interior paulistano. Três contabilistas, que trabalhavam em um escritório de contabilidade, o outro oficial do corpo de bombeiro. Lembro-me dos nomes de apenas dois deles, o Paulo e o Joyce, e vocês vão saber o porquê. O primeiro era o mais safado, mulherengo, ardiloso e engraçado. Ele tinha um telescópio ou luneta que permitia observar longe. Sua mania era ficar observando os apartamentos dos prédios localizados além do Mercado Central, na Rua da Cantareira e na Rua Barão de Duprat. Ele sabia o movimento de cada janela daqueles edifícios, até com horários dos acontecimentos. De sua janela ele poderia ver a chegada, sempre às 18h30, da garota do 8º andar de determinado edifício; ela já chegava tirando sua roupa, andava ‘peladinha’ entre os quartos, com janela para o nosso edifício, e o banheiro. Depois aparecia o namorado e o espetáculo continuava até próximo à chegada daquela que parecia ser a mãe dela, quando então eles já estavam sentadinhos e comportados no sofá da sala.
Havia o apartamento da mulher que se exercitava completamente nua, sem imaginar que de longe Paulo observava tudo. Assim, ele passava boa parte de sua noite vigiando as janelas dos outros, tal como no filme de Alfred Hitchcock “Janela Indiscreta”. Só não teve a oportunidade de presenciar algum crime, como no filme, estrelado por James Stewart, Grace Kelly.
Joyce apresentava outro distúrbio. Ele chamava atenção pela sonolência diurna excessiva. Não tinha um dia que ele não chegasse atrasado ao trabalho. Sua sorte era ser sócio do escritório de contabilidade do cunhado, que sabendo de seu problema, não exigia dele pontualidade. Não havia nada que o fizesse acordar na hora de ir para o trabalho. Seus companheiros procuravam acordá-lo antes da hora prevista, às vezes ele se levantava, se vestia, calçava as meias e sapatos e ficava pronto para sair. Como também embromava um pouco, os amigos, após verificar que ele já estava pronto, saiam todos, pois não tinham a regalia de que Joyce gozava no escritório.
Como eu saia um pouco mais tarde, sempre batia na porta desses vizinhos, para verificar se Joyce já saíra. Muitas das vezes eu tinha que bater bastante e algumas até gritar, para que ele acordasse. O cara aparecia na porta, todo pronto e com cara de muito sono, reclamando – eles já foram e não me acordaram? Muitas vezes, para despertá-lo, era preciso colocá-lo no banheiro, abrir o chuveiro e jogá-lo embaixo. Mesmo assim, era possível ele voltava a dormir.
Éramos todos jovens, solteiros. O local onde morávamos não era assim um Jardim Europa ou Jardim América, mas era o que nos cabia naquele latifúndio da selva de pedra. O Edifício São Vito abrigava uma comunidade bastante diversificada: boêmios, prostitutas, gays, donas de casa e suas crianças, cantores da noite, trabalhadores, estudantes, policiais, brancos, pardos, negros, amarelos, e outros atores sociais que emprestavam ao ambiente uma variedade de detalhes indescritíveis, mas vivos, que em sua essência formavam um caldeirão colorido de atitudes e atributos só encontrados no jeito de ser do brasileiro comum e miscigenado. Andávamos por aquelas bandas com segurança, não havia o crack, a cocaína, pelo seu preço, só era consumida nas altas rodas, maconha, havia sim, mas também consumida por pouca gente, principalmente artistas, diziam.
Recentemente visitei São Paulo e seu Mercado Municipal, de onde foi possível observar, ainda majestoso e imponente, o Edifício São Vito. Agora completamente desocupado e abandonado. Para quem já teve oportunidade de viver nesse colosso de edifício em plena efervescência, como eu, aquela imagem representava o apagamento da memória paulistana. Construído pelos arquitetos Kogan&Zarzur em 1959 o prédio é conhecido pela arquitetura modernista, possui vinte e cinco pavimentos residenciais totalizando 600 quitinetes, mais térreo e sobrelojas comerciais. Na cobertura um magnífico auditório que já foi palco de shows de artistas famosos em sua época áurea. Do topo do prédio é possível ter uma visão magnífica de toda a cidade, só comparável com as vistas do edifício Itália, localizado na esquina das avenidas Ipiranga e São Luís, e do edifício Altino Arantes, que já foi abrigo do Banespa, construído em pleno centro financeiro da cidade, Rua João Brícola, confluência do Largo de São Bento, Rua XV de Novembro, Rua Direita e adjacências. Inaugurado em 27 de junho de 1947, esse edifício tem como dono, hoje, o Banco Santander.
Os arquitetos Aron Kogane Waldomiro Zarzurforam ainda responsáveis, entre outros, pelos edifícios Racy, na Avenida São João, e o Mirante do Vale, com suas três portarias, uma na Avenida Prestes Maia outra na Praça Pedro Lessa e mais uma na Rua Brigadeiro Tobias. A associação dos dois arquitetos ainda é inusitada por se tratar de um judeu e um árabe.
Pelo que representa o Edifício São Vito para a memória dos paulistanos, ele não deve ser demolido, mas restaurado e preservado.
Infelizmente fique sabendo por uma amiga moradora de São Paulo, que o edifício São Vitor, palco de uma parte de minha história de vida, foi levado ao chão. Não sei o que será feito daquele local, por certo a Prefeitura de São Paulo já tenha destino reservado para ele. Só espero que seja digno de seu último ocupante.
Gilberto Carvalho Pereira
Fortaleza (CE)
Escrito em setembro de 2013
Notícia de sua implosão, novembro de 2013