O violão
―Levante homem, tá na hora.
―Hoje não vou, tá muito frio. Ninguém compra balas com frio e chuva.
―Não importa. Vai deixar o ponto a Deus dará? Outro toma conta e você fica sem lugar pra vender.
―Tá bom. Já vou.
Seu Deoclides levantou com má vontade, se entrouxou o mais que pôde e foi tomar café. Preferia ficar em casa, mas a mulher tinha razão. A aposentadoria dos dois mal dava para os remédios e precisavam aumentar a renda. Ele vendia balas junto à estação do trem e ela fazia faxinas, quando o reumatismo aliviava. Os filhos... Bem, os filhos tinham lá a vida deles. Apareciam no Natal, no Dia dos Pais e no Dia das mães, sempre com um presentinho nas mãos.
―Deo, vou jogar fora este violão.
―Tá doida? Deixe meu violão em paz.
―Esta tralha só faz ocupar espaço e pegar pó. A dona Cristine deu pra se livrar. O filho dela comprou uma guitarra elétrica e largou este num canto. Mudou de casa, mas continua ocupando espaço e pegando poeira, sem ninguém tocar.
―Como não. E eu não toco de vez em quando?
―Se você chama aquilo de tocar...
―Vou aprender direito. Tem um professor lá no Centro Cultural que cobra bem baratinho.
―Homem, olhe as suas mãos. Vai aprender a tocar um instrumento delicado com estes dedos cheios de calos?
―Nunca ouviu falar em palheta?
―Não. Nem quero saber.
―Pois eu digo. É um pequeno triângulo que serve pra tocar, no lugar dos dedos.
―Você já tá velho demais pra aprender alguma coisa.
―Tô não. Sempre é tempo de aprender.
―Vá de uma vez que você tá é perdendo a hora.
―E o meu violão?
―Não vou jogar fora.
―Vou deixar umas balas Azedinhas aqui...
―Xô!
Como seu Deoclides esperava, não vendeu quase nada. Com chuva todo mundo passa apressado, cheio de sacolas e guarda-chuvas, mas ele garantiu a continuidade do seu posto, na espera por dias melhores. À noite, depois do jantar, resolveu ”tocar” violão. Ficou ali dedilhando uma música que só ele ouvia. Dona Encrenca, era assim que o seu Deoclides chamava a mulher, foi ficando irritada.
―Deo, nem corda tem que chegue neste violão. Tá faltando uma.
―Não importa. Tô só treinando.
―Você ainda vai ter que escolher: ou eu ou esta geringonça.
O marido não disse nada, mas pelo olhar dele ela percebeu que a ameaça não foi uma boa ideia.
No outro dia, ele levou o violão para afinar e colocar cordas novas. Comprou até uma revista: Violão sem mestre. Tinha um amigo que aprendera a tocar só com estes manuais, mas para ele parecia tudo muito difícil. Desde então, tocava todas as noites, enquanto a mulher assistia à novela. Ficava alguns minutos absorto, vibrando aquelas cordas e fantasiando sobre os sonhos que não conseguira realizar: uma casa maior em um bairro mais próximo do centro, uma viagem ao Rio de Janeiro pra ver o Cristo Redentor, curso de Inglês para os filhos, uma linda festa de aniversário para a mulher...
Um dia, o amigo Joca chegou apressado na banca.
―Tem fogo na vila, Deoclides. Parece que a sua casa foi atingida.
Ele saiu correndo o máximo que podia. Não era a primeira vez. As autoridades afirmavam que os catadores de lixo da vizinhança mantinham grande quantidade de produtos inflamáveis acumulados. A verdade é que ninguém sabia direito qual era a origem dos incêndios. Desta vez, foi de grandes proporções.
Ao chegar, viu que sua casa viera abaixo. Não sobrou nada, mas ele não se importava. Precisava encontrar sua mulher. Era difícil localizar alguém no caos que se instalara. Tinha gente correndo, gritando, chorando, alguns carregando os poucos pertences que conseguiram salvar. Os bombeiros lutavam contra a falta de água, mangueiras furadas e repórteres tentando fazer entrevistas. As vielas estreitas não davam conta de toda esta movimentação, das montanhas de objetos amontoados e das ambulâncias. Falavam em vítimas fatais, mas ninguém sabia ao certo.
O homem subiu e desceu várias vezes a ladeira olhando para todos os lados. Seu coração velho e doente já começava a bater mais rápido, a respiração era difícil, mas ele não desistia. Sabia que a mulher estava em casa na hora do incêndio. Sem a dona Encrenca, não poderia recomeçar.
Enfim ele a encontrou. Estava encolhida junto a um muro que ficara intacto e chorava abraçada ao violão.