Ester

Até os vinte e seis anos Ester levava vida normal. Bonita, um metro e setenta de elegância, corpo perfeito e conservado em academias, pilates e regimes não muito ortodoxos. Bom emprego, profissional competente da área da saúde, como enfermeira chefe do Hospital Central era a alegria de sua mãe Valdívia, que com orgulho não se cansava de bendizer ao misericordioso Deus pela filha que Ele lhe dera. Ambas se tornaram cúmplices em tudo, depois da morte do pai, ocorrida antes de Té - como a mãe a tratava -, se graduar na universidade.

No trabalho, competente como já foi dito, procurava sempre agradar a todos, principalmente aos jovens médicos que pelo hospital passavam em seus períodos de estágio ou de residência. Para estes últimos, os agrados eram mais fervorosos, incluindo afagos, carícias, amassos, e, para alguns, seções de sexo nas noites de plantão. Não se apegava a nenhum deles, pois, como no hospital, passagem pela vida dela desses ansiosos jovens, tinha que ser curta, sem ligações afetivas verdadeiramente ditas. Sua vida era uma alegria só, dizia ela sempre, sem esquecer-se de dar graças a Deus por isso. Mas ela tinha um vício, fumava tal qual uma caipora, como se diz no interior do Brasil. Seu vício data da adolescência, a partir dos 13 anos de idade já fumava escondido dos pais, somente na escola, influências das colegas mais maduras. Seu pai fumava muito e foi diagnosticado com câncer na faringe, condição que o levou a óbito.

Ao completar vinte e sete anos Ester começou a notar que algo estranho estava acontecendo. Sempre ao engolir qualquer coisa, mesmo a sua saliva, sentia certo incômodo. Achando que era apenas inflamação na garganta, tinha sempre pastilhas que ela usava para amenizar o desconforto e adiar a ida a médicos. Como estas pastilhas continham em sua composição substâncias analgésicas e anestésicas, o efeito de cessar a dor era imediato. Ela jamais pensou em coisa mais grave, mesmo sendo uma profissional da área da saúde.

O tempo a fez reconhecer que o problema era mais sério. Sua voz começou a se modificar, a cada dia ficava mais rouca e aumentava a dificuldade para engolir. Procurou um otorrinolaringologista fora do hospital, pois não queria saber de falatórios ao seu respeito, principalmente sobre sua saúde, considerada de ferro, como ela e suas companheiras de trabalho a classificavam.

O Dr. Reginaldo fez um exame físico da garganta de Ester e de seu pescoço, constatando a presença preocupante de inflamação na laringe. Para mais clareza do diagnóstico o médico solicitou uma laringoscopia. O resultado apontou a necessidade de uma biópsia e foi procedida a retirada de um pequeno pedaço da região lesionada, para exame anáto-patológico mais detalhado em um laboratório de patologia. Nada mais foi dito no momento, pois o médico não queria que a sua bela paciente ficasse preocupada antecipadamente. O retorno seria após três semanas.

Mesmo assim, Ester saiu da clínica do médico bastante preocupada. Seus pensamentos se voltavam agora para a doença do pai, que antes de morrer sofrera muito. O diagnóstico para câncer foi obtido tardiamente, pois ele se dizia homem com bastante saúde, por isso não precisava de médico para dar palpite em sua vida. Ela queria chegar a casa o mais rápido possível, para relatar à mãe as suas preocupações com a visita ao médico, naquela tarde.

Encontrando sua falou sobre os exames realizados e de suas preocupações. Dona Valdívia chorava bastante, ela guardava na memória os dias de sofrimento do marido, das noites de sono perdidas a cuidar dele, das idas ao hospital, da situação financeira abalada pelo gasto excessivo com remédios, tudo lembrava muito sofrimento. Ela não queira que Deus reservasse isso para ela novamente, principalmente com sua adorável filha. Sua filha não merecia isso, uma pessoa tão boa e dedicada a salvar os outros.

- Se acalme minha mãe. Foram só exames de rotina, não há com o que se preocupar. Você vai ver, vai dar tudo negativo, dizia Ester abraçada à mãe.

- Você já devia ter procurado o médico há mais tempo, olhe o caso de seu pai, ele dizia que não gostava de médicos, demorou a procurá-los e deu no que deu, observou dona Valdívia.

- É só uma inflamaçãozinha na garganta, minha mãe. Nem dor eu sinto, escondeu Ester.

O certo é que ambas foram dormir bastante preocupadas. Demoraram a dormir naquela noite. Na manhã seguinte as duas mulheres não tocaram mais no assunto, apenas se olhavam desconfiadas. Ester foi trabalhar como fazia normalmente e dona Valdívia tomou as rédeas da casa, o trabalho doméstico diário.

Passadas as três semanas, chegou o dia do retorno ao médico. Ester acordou nervosa, pois tinha percepção do que poderia estar acontecendo com ela. Procurava ser forte, não demonstrar para a mãe que estava preocupada. Vestiu-se discretamente, desceu para o café, mesa posta, de tudo que ela gostava, mesmo assim, quase nada comeu apenas o necessário para a mãe não desconfiar que ela estavesse preocupada. Ao término do café, entrou em seu carro e rumou para a clínica do Dr. Reginaldo. Eram 9h30 quando a moça entrou na sala de espera da clínica médica. Parecia que todos olhavam para ela, todos sabiam do drama pelo qual estava passando. A ansiedade aumentava, depois de uma hora de espera foi chamada à sala do médico. Ele já a esperava com os resultados de seus exames e biópsia nas mãos.

- Bom dia, Ester, sente-se. Já tenho um diagnóstico para o seu problema de saúde, completou o médico.

- Bom dia Doutor, espero que nada de grave o senhor tenha encontrado.

O médico baixou a cabeça, consultou demoradamente os exames, principalmente a biópsia, e vaticinou:

- Você tem um câncer na laringe. É do tipo carcinoma epidermóide, quando as células que revestem a laringe sofrem alterações e se tornam malignas. Os sintomas iniciais podem facilmente ser confundidos com outras situações menos graves como o pigarro na garganta ou simples dor de garganta. Embora a doença geralmente só apareça entre os quarenta e cinquenta anos de idade e mais frequentemente entre os homens, não é surpresa que em mulheres de sua idade ela também se manifeste.

- Sua taxa de cura, continuou o médico, depende da localização do tumor e do diagnóstico precoce. Quando diagnosticado tardiamente, e é o seu caso, ele pode se disseminar para estruturas adjacentes, por metástases para linfonodos, pela corrente sanguínea.

O médico não olhava para a sua paciente, sabia que ela estava sofrendo e não queria participar de sua dor. De repente Ester interrompeu o discurso do médico e perguntou:

- Doutor, qual a extensão do meu problema? Vou ter que fazer os tratamentos, quimioterapia, radioterapia etc. etc.?

- Vai depender da evolução da doença. O carcinoma epidermóide entre indivíduos com parentes de primeiro grau com câncer via aerodigestiva superior, o caso de seu pai, representa situação de alto risco. Você também se encontra no grupo de risco dos fumantes, concluiu o médico.

Dois meses depois Ester foi internada para fazer os tratamentos recomendados pela equipe médica do hospital no qual trabalhava. Nenhum conseguia estancar a agressividade da doença. Nessa situação, enquanto sua condição física e psicológica permitia, ela colaborava no plantão da UTI oncológica feminina. Ali ela passou a ter contato direto com doentes terminais. Ela experimentava sensações de sofrimento que por certo haveria de acontecer com ela em breve. Isso foi minando suas forças e sua compaixão, que sempre se estabelece entre os iguais, entre sujeitos com as mesmas manifestações de dor e sofrimento.

Nos plantões os dias se passavam devagar, as noites eram sombrias, o ambiente à meia luz, os bipes dos aparelhos ligados, gemidos, choro, chamados desesperados.A alguns doentes eram dados sedativos fortes, para passar a dor. Outros, como se estivessem esperando um ataque de armas químicas portavam mascaras, que permitiam o oxigênio manter aquelas criaturas esquálidas mortos-vivos. Por muitas vezes Ester sentia encontrar-se ali, naquelas condições e sabia que não iria suportar. Em quase todos os plantões ela percebia que a situação piorava, tanto para seus pacientes como para ela, que já não aguentava e não via solução para aquele quadro desesperador. O sofrimento das pacientes lhe doía mais que o dela próprio.

Em certo plantão uma das pacientes pediu que ela desse um jeito na sua vida, que acabasse com aquele sofrimento. Ela tinha consciência que eticamente não poderia fazer isso, seria crime. Por outro lado, fazer uma pessoa idosa sofrer também é crime. Esse dilema lhe atormentava. Ética ou caridade? Ela conhecia o sofrimento daquela mulher. Ester ainda não se encontrava na condição de doente terminal, mas sabia que lhe faltava pouco tempo para entrar nessa condição, sua ainda lucidez lhe permitia deduzir isso.

O pedido da velha senhora doente terminal martelava-lhe a cabeça. A pergunta era sempre a mesma: por que continuar fazendo sofrer uma pessoa se o seu fim está próximo, só não se sabe quando? Se não há mais possibilidade de se estabelecer a sua saúde, por que mantê-la viva por meio daquela parafernália de aparelhos?

Em outro plantão noturno ela ouviu mais uma vez a súplica daquela mulher paciente terminal. Chegou-se ao seu leito, verificou suas condições e diminuiu a quantidade de oxigênio que estava sendo administrada. Em poucos segundo a senhora adormeceu profundamente e não mais acordou. O diagnóstico da morte foi parada cardíaca.

Em outras ocasiões ela procedeu da mesma maneira, mas somente entre as pacientes terminais que sofriam bastante. Nenhum remorso, tristeza, sempre. Ela tinha na sua consciência que aquilo era para ser feito. Acabar com o sofrimento de suas pacientes era um ato humanitário.

Em seu último plantão, quando quase já não tinha condições de executar suas tarefas, recebeu de uma paciente o pedido para abreviar sua vida. Ela já não queria fazer mais aquilo e se recusou a atender aquela solicitação. A paciente observou que tinha conhecimento que ela já havia dado cabo de algumas doentes e queria o mesmo tratamento. Assustada e perplexa, Ester não sabia o que fazer. Pensava que ninguém haveria de descobrir o seu segredo. Depois de alguns minutos sem falar nada a enfermeira pediu para a paciente esperar um pouco, foi até a enfermaria, retirou de um armário de medicamentos um frasco contendo um líquido, apanhou uma seringa de injeção, uma agulha e a conectou na seringa, aspirou ao líquido do frasco e voltou para a UTI.

Junto ao leito da paciente terminal Ester pediu para que ela injetasse o conteúdo da seringa em uma de suas veias, apontando o local em seu braço direito, já com o garrote. A senhora ficou pasma, ela não era enfermeira e não sabia aplicar injeção. Ester informou que lhe ajudaria a encontrar a veia certa. Ela só teria que apertar o êmbolo até o fim.

- Por que você quer que eu faça isso? Não há outros enfermeiros aqui no hospital?

- Eu também estou doente, com câncer e meu fim está próximo. Não quero sofrer como vocês estão sofrendo. Meus colegas de trabalho não fariam o que estou pedindo a você. Também não tenho coragem de fazer isso comigo. Em troca eu desligo os seus aparelhos. O efeito do remédio que será injetado em mim não é imediato.

A velha senhora concordou, pegou a seringa e injetou seu conteúdo na veia indicada por Ester, que para não assistir aquele ato insano, virou o rosto para o outro lado. Em seguida Ester desligou os aparelhos da velha senhora, deitou-se ao seu lado. Na troca do plantão elas foram encontradas deitadas na cama abraçadas uma a outra, ambas serenas, como se estivessem a sonhar uma linda história de amor.

Gilberto Carvalho Pereira - Fortaleza (CE), 18.8.2013

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 14/11/2014
Reeditado em 14/11/2014
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