Sala Para Dois

-Você viu?- ele perguntou- Eles pousaram um robô em um cometa.

Ela ficou calada. Continuava deitada no sofá, com os olhos na televisão.

-Sabe o que eu acho? Eles vão aterrissar nesses cometas e descobrirão toneladas e toneladas de ouro, platina, ródio, diamante. E vão gastar bilhões para trazer esses materiais à terra. E trarão. Depois, haverá tanto ouro e diamante na terra que esses minerais simplesmente perderão o valor. Canecas de ouro serão vendidas nas feiras por alguns centavos. Nossa, seria incrível ver tanto dinheiro gasto para simplesmente desvalorizar nossas riquezas. Não acha?

-Não sei. Porque você tem a mania de enxergar o colapso em tudo, de perverter o sentido das coisas e ainda achar engraçado isso?

-Puxa, maldição se eu sei. Por exemplo, acho hilário quando um paraquedas não abre. Vai me dizer que não é engraçado?

-Não, não é. Você é sádico, só isso.

-Não é verdade. Sinto-me tocado pela dor, sinto compaixão. Mas quando os esforços humanos resultam em algo absurdo é engraçado. Não temos asas, veja, isso são dois braços, não asas. Por mais que corramos a toda velocidade, não dá para decolar até uns 4 metros, dá? Então, a pessoa pula a milhares de metros de altura de um avião com uma mochilinha nas costas e espera pousar a salvo. Quando se esborracha no chão não tem clima para encomendar um réquiem, tem?

- Bem, você sabe que precisamos conversar.

-Eu sei, você já disse. Quer beber alguma coisa?

-Me traz água.

-Água. Água. Vou beber vodca.

-Se você ficar bêbado vou embora e só volto quando você melhorar.

-E se eu nunca mais ficar sóbrio?

-Você que sabe. Minha boceta continuará aqui e certamente não intacta. E depois, talvez, eu possa mandar um padre rezar uma missa no seu velório.

- Não conte com minha morte precoce, alguns ficam bêbados por décadas. E que papo é esse de padre? Eu nem morri e você já quer me sacanear?

- Bem, você não quer conversar. Você só quer saber de falar, falar... é muito desagradável. Você é realmente nojento, quando quer.

- E quando eu não quero?

Ele foi até a cozinha. Encheu um copo com água e outro com suco de laranja e vodca. Voltou para a sala com o copo de água cheio e entregou a ela.

-Obrigada. Você sabe que eu não planejei isso. Eu sou tão culpada quanto você. Você também participou...

- Não disse que não. Mas pense em tudo que isso envolve.

-Você não me ama?

- A porra da puta frase. Você assistiu filmes demais.

- Filmes? Pelo amor de Deus, eu vou embora.

-Espera. Se você fizer realmente questão... por mim tudo bem. Eu trabalho. Talvez algumas coisas demorarão a acontecer. Só isso. Não é o fim do mundo.

-Você fala disso exatamente como se fosse o fim do mundo. Quer saber? Eu não quero. E depois disso nunca mais quero ver você.

Eles ficaram calados. É triste ser mulher - ele pensou. Se eu tivesse nascido mulher jamais me entregaria a homem algum. Ele percebia a maldade com que agia, como algo lamentável, sim, mas que existia e pronto. A maldade podia ser lamentada, mas não evitada. É também triste ser homem- ele pensou. Sentiu vontade de chorar e foi até a cozinha buscar outro drinque. Deixou o copo vazio e voltou com os olhos secos.

-Escute, não quero brigar. Deus sabe como já é difícil brigar com o mundo inteiro. Não quero brigar com você, não com você.

-Você briga com o mundo inteiro em primeiro lugar porque se acha uma pessoa muito especial.

-De elevadas aptidões espirituais.

-Só que você não é, você é igual a todo mundo, mas só tem boca para criticar os outros, ver defeito em tudo. E além do mais, é covarde. Você não aguenta o peso quando a carga fica só um pouco mais pesada.

-Só que neste caso não é só um peso a mais, ele no mínimo dobrará.

Ela o olhou em silêncio. Seu rosto não tinha tristeza, nem raiva, ela estava perplexa e só.

-Escute- ele continuou- todas essas acusações são inúteis. Não quero que você vá lá amanhã.

-Já está marcado, eu vou.

-Não quero que você vá, porque tenho certeza que se arrependerá e depois me culpará o resto da vida por isso. E será uma culpa que não poderei espiar. Não terei o que fazer quanto a ela.

- Não precisa se sentir culpado. Você não vai nem precisar se lembrar de mim.

-Ora, isso não é possível. Pelo menos, não como vejo as coisas nesse momento. E essa porra de instinto, talvez possa ser aprendido.

-Não é o que você quer.

-Não é o que eu queria há um mês, digamos assim, mas quem é que escolhe tudo?

Ele foi buscar outro drinque. Na tevê passava um noticiário. Ela foi até a janela e olhou as luzes da cidade através do vidro embaçado pela chuva miúda que caia desde que anoitecera. “Hoje o programa espacial europeu pousou sem acidentes o robô que coletará informações sobre a composição química do cometa e a origem da vida na terra”. Ela olhou para o alto e imaginou toneladas de ouro sendo trazidas do espaço para a terra e sorriu. “A presidente da república anunciou que o aumento dos combustíveis valerá a partir de amanhã”. Amanhã, ela pensou. Encostou a testa no vidro e colocou as mãos no parapeito. Ele voltou à sala e a abraçou por trás, afundando o rosto em seus cabelos.

-Eu quero vocês, não se preocupe- ele disse e então ela gritou.

Daniel Barbosa
Enviado por Daniel Barbosa em 13/11/2014
Código do texto: T5033343
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