A defesa do ladrão

- Face ao exposto neste tribunal e perante a gravidade dos factos, antes de proferir a sentença, convido o reu, a dizer o que entenda por bem em sua defesa.

- Muito obrigado senhor doutor juiz, pela oportunidade que me faculta, uma vez que, sem menosprezar o digno doutor que me representa, entendo que a dor só dói ao paciente.

Solicito a vossa compreensão para uma pessoa que sem grandes habilitações, vos poderá parecer rude em certas expressões que possa dizer perante tão dignos senhores, mas de maneira alguma, serão de desrespeito a este tribunal. Começo então, por expor as razões, razões que bem compreendidas, entendo que possam amenizar a minha pena.

Nasci no seio de uma família muito carenciada e onde a única fartura que tínhamos em casa eram a tareias que o meu pai me dava, sempre que estava com os “azeites” ou quando alguém me topava na cinchada…

- O reu, faça o favor explicar o termo “cinchada”- Solicita o Juiz

- Palmar fruta, roubar, senhor doutor Juiz!

- Como ia dizendo; Sempre que alguém bufava aos ouvidos do meu pai, era um enfardar que era um deus nos acuda. Contava a minha mãe que numa ocasião não “lerpei” (morri) por mero acaso, quando levei tal pontapé no fundo da rabadilha, que aos rebolões contei quantos degraus tinha a escada, o resultado foi andar quase um mês sem me poder sentar. Mas a larica (fome) tinha mais força que a dor, do jeito que eu tornei-me um especialista em vagabundagem, na procura constante de alguma coisa comer. Na época em que havia fruta, tirava a barriga de misérias, quando acabava, era o que se podia arranjar, pedia aqui um bocado de pão, ali, umas azeitonas e assim enganava a fome.

Fui crescendo e a necessidade obrigou-me a roubar outras coisas, sim porque nem só de fruta se pode sobreviver, então...

- Um momento! - Interrompe o Juiz – O reu, quer dizer que só roubava por necessidade?

- No princípio sim, mas com o tempo, apanhei-lhe o gosto e após ter lido muito jornal, sobre assaltos e roubos, constatei que era um modo de vida como uma outra qualquer profissão, se bem que de risco muito muito elevado, no entanto de grande importância…

- Vamos lá ver! - Interrompe o Juiz – Como se deve ter apercebido, foi-lhe proposto que se defendesse, uma vez que os crimes de que é acusado poderão ser sancionados de uma ou de outra forma, conforme o seu grau de arrependimento, o que não me parece, à vista do que tem exposto.

- Perdão, senhor doutor Juiz! Vossa Excelência não me deixou acabar. Permita-me que conclua e então, sim, faça justiça.

Um sururu ecoou na sala, o que obrigou o juiz à força de umas marteladas e ameaça de a mandar evacuar a sala, impor o silêncio.

- Prossiga! – Rosnou o juiz, com ar de quem comeu e não gostou.

- Como estava dizendo, considero o acto de roubar um ofício tão digno como outra profissão…

O riso na assistência fez o juiz dar mais duas marteladas, se bem que, com um sorriso meio-velado.

- Senão, repare: Quanto a riscos, a gente nunca sabe como correrá este ou aquele roubo. Quantas falsas perspectivas e quantos perigos se corre, às vezes por uma carteira vazia, sujeito a ser apanhado e levar uma surra, ou uma chumbada que nos mande para o jardim das tabuletas em três tempos. Sem horários, sem segurança social, sem médico de família, sem reforma e ainda sofrendo de incompreensão de toda uma sociedade.

- Incompreensão?- Comenta o Juiz, fazendo um esforço para se conter e não desatar a gargalhar.

- Incompreensão, sim senhor Doutor! Note: Peço-lhe um esforço para que entenda de que seriam das prisões, serviços administrativos, alarmes e o que isso implica, como técnicos, empresas, fabricantes, seguranças, tantos polícias, guardas prisionais, advogados… E porque não dizê-lo, tribunais, e até V. Exª. que têm os vossos empregos e ganham o vosso pão, graças a quem? A nós ladrões, que por muito que vos custe aceitar, somos a mola impulsionadora de toda esta economia.

Desta forma, apelo a V. Exª. que sendo nós os ladrões uma espécie de garantia do vosso salário, me veja não como um reles delinquente, mas como um elo essencial nesta roda, que à custa de mil sacrifícios, proporciona milhares de empregos neste país.

Alfredo da Costa, conhecido por o “mãozinhas”, foi absolvido de uma pena que o próprio advogado de defesa tinha calculado em 8 anos de prisão.

Ficou porém, em segredo de justiça a razão da absolvição, mas falava-se à boca pequena, que o juiz levou em linha de conta a possibilidade de desemprego, acaso se acabassem estes profissionais.

Lorde
Enviado por Lorde em 08/11/2014
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