A solidão da morte

Conheci dona Francisca em um leito de enfermaria, quando visitava uma tia que se encontrava doente. Era a terceira vez que eu visitava essa tia. Era momento muito curto, pois os visitantes tinham apenas quinze minutos para estar junto ao leito de seu doente. Quando mais de um parente estava ali para a visita, os quinze minutos eram divididos entre eles.

Desde a primeira vez que entrei na enfermaria, percebi uma senhora de certa idade, bastante simpática, que não recebia parentes ou amigos para lhe fazer companhia nesses momentos, de muita alegria para alguns e tristeza para outros. Como eu estava só reparei que ela me direcionava um olhar de súplica. Ela não dizia nada, mas percebi que queria falar alguma coisa para mim. Eu não saiba como proceder. E se fosse apenas impressão minha? Sou um pouco tímido e demorei a me aproximar da simpática senhora. Ao chegar junto ao seu leito ela abriu um sorriso largo, procurou minha mão com a sua mão direita e eu a ofereci.

Ficamos alguns minutos sem nos dizer nada. Eu achava que, ou ela não falava ou não ouvia. De repente ela apertou minha mão fortemente e disse:

- Como seria bom que eu também tivesse uma pessoa para me visitar. Estou aqui há mais de dois meses e só recebo visita de médicos e enfermeiros. Eles não falam comigo, só executam seus procedimentos médicos.

Perguntei-lhe se não tinha parentes na cidade, se não conhecia ninguém. A resposta foi demorada e hesitante. Percebi algumas lágrimas escorrendo pela sua face. Com a mão esquerda enxugou as gotas de saudade que lhe escorriam pela face enrugada, já bastante machucada pelo tempo, que a deixou da cor de cera e sem brilho.

- Tenho filhos e parentes, sim, e também amigos! Mas todos estão ocupados com os seus afazeres diários, não se importam mais comigo, sou um estorvo para eles. Estou com doença incurável e só dou trabalho. Fico aqui pensando – eu sempre cuidei de meus filhos e netos, não sei porque eles me abandonaram.

Com algumas leituras sobre relações interpessoais sei que a qualidade do encontro determina a sua eficiência. Sei também que algumas doenças provocam sentimento de isolamento nos idosos, que desejam ter seus sentimentos, ideias e dilemas entendidos por outras pessoas. Assim, não senti pena dessa senhora, tentei colocar-me no lugar dela, surgindo daí uma empatia que me permitiu entender o seu drama. Compreendi que ela desejava ser acolhida atenciosamente, que conversassem com ela de modo que ela entendesse, isto é, sem a barreira linguística que separa o médico do doente.

Minha tia já não respondia aos estímulos da presença de alguém. Assim, foi possível dividir o tempo que dispunha para ela, com a dona Francisca. Em pé, ao seu lado, permaneci oito minutos a conversar. Ela a contar sua vida e eu a contar uma parte da minha. Muito do que ela contava era de seu passado, daquilo que há muito estava guardado em sua memória. Eu me deliciava com as suas lembranças. Já nesse tempo eu guardava histórias do cotidiano das pessoas. Ouvia e corria a casa para registrar tudo, enquanto ainda fresco em minha mente.

Dona Francisca, em mocinha, como dizia ela, era bonita e cobiçada pelos rapazes de sua cidade. Havia uma pracinha, chamada de Praça da Prefeitura, onde rapazes e moças se mostravam. Os rapazes encostados nos postes de iluminação, poucos tinham carro e estes ficavam junto aos seus troféus. As moiçolas desfilavam ao redor da praça, com a pergunta já formatada em seu cérebro: quem me quer? Os rapazes se encantavam com aquele desfile. Muitos casamentos aconteceram a partir daquela praça, namoros também tiveram seu fim nesse local, contou-me ela.

- Isso era só aos sábados e domingos, quando nossos pais permitiam que saíssemos à noite – enfatizava dona Francisca. Minha adolescência foi maravilhosa, dizia ela.

Algumas vezes ela contava as mesmas passagens de sua vida, como quisesse que eu guardasse em minha memória para um dia transformá-las em palavras escritas e dar a conhecer para mais pessoas. Seu medo de passar sua vida em branco era de entristecer qualquer um.

Numa destas visitas ela me disse:

- Eu gostaria de ter sido famosa, uma artista famosa, para que todo mundo me admirasse, me cortejasse. Não quero deixar este mundo como se não tivesse vivido nele.

Infelizmente foi isso que aconteceu. Ela passou por aqui em brancas nuvens, como diz o poeta. Sua vida foi um desastre. Filha de pai rico, fazendeiro, ela foi prometida em casamento para um velho e rico plantador de cacau, muito amigo de seu pai. A ganância do pai o levou a isso, ele queria as terras do amigo, que não tinha parente algum. Sua filha seria a única herdeira.

Pouco tempo de casada o velho morreu. Ela ficou sabendo que o marido tinha uma amante e que passara toda a fortuna para a manteúda. Dona Francisca foi escorraçada da fazenda e foi procurar guarida na casa do pai. Sabedor do ocorrido e colocando a culpa da filha por não ter sido esperta, não ter tomado conta do patrimônio que o velho iria deixar para ela, não a aceitou em casa. Ela era filha única. O pai, viúvo, vivia com uma mulher que era uma “peste”, não queria saber da enteada também. Quando o pai morreu já havia passado toda a fortuna para a madrasta de dona Francisca.

- Foi um inferno para mim essa época, me disse dona Francisca. De repente fiquei sem nada, sem casa, sem dinheiro e sem família. Fui morar em uma fazenda longe da de meu pai, não queira saber de ninguém que o tivesse conhecido.

- Trabalhei na roça – continuou ela – fui amante do patrão, fui expulsa dessa fazenda, me alojei em outra, novamente fui obrigada a me amasiar, me amancebar, como dizia-se antigamente, com o patrão, foi quando tive um filho dele.

E assim, de desgraça em desgraça ela foi contando sua vida. Quando eu disse que me deliciava com os momentos já vividos foi porque, às vezes, eu não sabia se era fantasia e fantasmas fabricados pela mente já cansada da vida e da doença. O doente internado em hospital pode apresentar sintomas de pavor, diante da morte iminente. Nesse caso pode aflorar a necessidade de que sintam compaixão dele, formulando mirabolantes histórias de sofrimento e dor.

As histórias de dona Francisca eram mais que verdadeiras. Sua sinceridade estava estampada em seu sofrido rosto, mas, mesmo assim, eu não tive pena dela, nem ela queria isso. Ela só queria ter com quem conversar, alguém que alegrasse seus últimos dias de vida. Ela não queria chegar junto ao Pai, dizia sempre, amargurada, ela não queria desagradá-Lo. Nosso convívio durou apenas uma semana, acontecido em três visitas.

Que ela tenha alcançado o reino dos céus!

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 06/11/2014
Reeditado em 06/11/2014
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