495-ARGOS E AZERUPE - Sobre nomes e apelidos
Cheguei no Rio de Janeiro com o pé direito. Vinha do interior de Minas e fui morar com meus tios, no Flamengo. Logo consegui trabalho no Banco Realcrédito. Não ganhava muito, mas o suficiente para levar uma vida tranqüila. Durante a semana ia ao cinema duas ou três vezes e nos fins-de-semana entremeava a praia com passeios pelos lugares pitorescos da Cidade Maravilhosa. Aos dezenove anos, era tudo o que um matuto como eu poderia desejar da vida.
Ao ser admitido como escriturário, fui trabalhar no departamento de cobranças da agência de Copacabana e minha tarefa principal consistia em datilografar memorandos e avisos de vencimentos. As máquinas de datilografia eram, na ocasião, o máximo de tecnologia nos bancos e escritórios. Máquinas manuais, pois as elétricas só iriam aparecer dez anos depois, na década de 1950.
— Você deve colocar as iniciais do seu nome antes da data. — Instruiu-me o conferente Azerupe. — Assim, posso saber quem errou e devolver o serviço.
Azerupe era o chefe do departamento. Impressionava pela sua presença. Um homem grande: alto, devia quase dois metros, gordo sem ser obeso mas com barriga avolumada. Careca, olhos miúdos, preto e brilhantes na cara de lua cheia. Queimado pelo sol da praia, que freqüentava todo fim-de-semana, era moreno escuro. A voz era cavernosa e rouca. No conjunto, aparentava mais chofer de caminhão ou estivador que funcionário de banco.
Sob seu comando, trabalhavam doze datilógrafos. Eu era o mais jovem, o menos experiente e quase desaparecia, de tão pequeno, entre os colegas. A primeira impressão que tive se “seu” Azerupe foi de receio. O homem impressionou-me pela estatura. Eu procurava passar despercebido, mas era insistentemente chamado à sua mesa, para receber, devolvidos, memorandos datilografados erradamente. Não tinha experiência em datilografia e errava muito. Ele gostava de chamar a atenção ou fazer as observações sobre os memorandos em alta voz, audível para todos. Logo fui tomado de antipatia por ele.
— E tem mais. Eu disse para datilografar as iniciais, não o nome completo. Que é isto aqui? Argos? Que significa.
Expliquei-lhe, com confiança:
— A de Antônio, R de Roque, GO de Gobbo e S para completar.
— Mas o que é Argos? — Perguntou. E então descobri um ponto fraco: sua ignorância em mitologia grega.
— Argos é um personagem da mitologia grega, que tinha cem olhos...— comecei a explicar-lhe.
— Chega! Não me venha com explicações idiotas. Vamos, refaça estes memorandos errados. E passe a usar apenas arg.
Entre os colegas, afeiçoei-me a Nilo, que trabalhava ao meu lado. Magro, de meia estatura, loiro e um pouco mais velho do que eu. O chefe não gostava de conversas no trabalho, mas nos intervalos para os lanches (tínhamos dois, em seis horas de trabalho), estabelecemos um conhecimento amigável.
Já estava há alguns anos no departamento, e foi com palavras de ânimo que iniciou a conversa comigo, logo nos primeiros dias de meu trabalho:
— Não se aborreça com o seu Azerup. Ele é assim, meio estabanado pra chamar a atenção, mas no fundo, não é má pessoa, não.
— Ele está implicado comigo. — eu disse.
— Não, é que você ainda não domina o serviço. Não desanima não. — Nilo era mostrava-se cordial.
— Mas que nome esquisito que ele tem! — Comentei. — Deve ser o sobrenome.
— Não, é nome mesmo. É pureza de trás pra frente. Sacou? Mas, cuidado! — advertiu Nilo. — Ele fica louco quando alguém fala sobre isso.
Achei muito estranho. Um homenzarrão de voz de trovão, mal-educado no lidar com os subordinados, com o nome de pureza ao contrário... e que não gostava de ser lembrado disso...
Fui marcando os pontos fracos do seu Azerupe. Primeiro, nada sabia de mitologia grega, que, para mim, era o máximo da ignorância. Agora, essa de não gostar de seu próprio nome às avessas.
Com o passar do tempo, fui me adaptando ao trabalho, aos colegas e ao chefe. Como os memorandos feitos por mim melhoraram muito em qualidade, raras vezes era chamado à atenção. E a familiaridade com os colegas me restituiu a confiança.
Um dia, só para testar o chefe, escrevi, no lugar das iniciais identificadoras, o nome proibido:
“Argos/Rio de Janeiro, 1o. de abril de 1946.” Foi como iniciei o memorando. Mostrei ao Nilo, que me admoestou:
— Cuidado! Seu Azerupe hoje está de veneta.
Coloquei o memorando sobre a mesa do chefe. Daí a Pouco, ele grita de sua mesa:
— Antônio Roque, venha cá!
Fui, já esperando a reprimenda e preparado para a resposta.
— Pensei eu tinha aprendido, mas vejo que até hoje, não aprendeu nada. — Falou, como que discursando para todos os colegas. — Já lhe tinha dito pra usar apenas as iniciais do seu nome.
— Falou , sim — Respondi-lhe de cabeça erguida. Mas, se o senhor não gosta de Argos, posso usar Sogra.
— Sogra? Que é isso? Que atrevimento é este?
— É Argos ao contrário. Assim como seu nome.
— Meu nome? Que tem meu nome a ver com isso.
— Sim. Assim como Azerup é pureza de trás pra frente.
Por um momento, ele nada disse. Depois foi se levantando devagar, bem devagar, parecia que estava tentando se controlar para não me bater. De pé, me ordenou como se eu fosse um aluno e ele, um professor truculento:
— Cala a boca e sente-se no seu lugar.
Os colegas ouviram tudo de olhos arregalados e em silêncio. Na meia hora de trabalho que restava nada mais fiz. O sairmos da agência, Nilo falou comigo:
— Cê ficou doido? Ele vai se vingar. O mínimo que pode acontecer é você ser transferido de departamento. Ele pode até mandar você “passear”...entendeu?
— Num tenho medo. — Menti, pois agora estava, sim, me borrando de medo.
No dia seguinte, de manhã, sobre minha mesa de trabalho, um envelope fechado,com meu nome. Abri e li a carta. Devo ter empalidecido ou qualquer coisa assim, pois Nilo me perguntou:
— Que foi? Tá sentindo alguma coisa?
— Fui transferido. — disse, mostrando-lhe a carta.
— Transferido? Pra onde?
— Pra Manaus, no Amazonas.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 20 de maio de 2008
Conto # 495 da Série Milistórias