O pintinho desgarrado e o Natal
Hoje sou um frango, mas já fui ovo, pintinho e coisa e tal. Essa história vou passar para vocês.
Não conheci meus pais. Eu havia morado na fazenda do patrão até então, uma fazenda muito grande. Os galináceos de lá sempre foram criados soltos, pois não são a preocupação principal dos donos. Eles plantam soja, milho e outras coisas mais.
Não há lugar definido para eles, vivem ao léu, comem as sobras da fazenda, dormem ao relento, ao contrário do belo plantel de equinos e bovinos, não recebem vacinação, ração suplementar e nem remédios para a prevenção de doenças. São, na verdade, a parte marginal daquela sociedade rural. As galinhas mães colocam seus ovos em qualquer lugar da fazenda e são os empregados os privilegiados, pois os patrões não estão nem aí para a origem das vidas dos galináceos.
Pois bem, certa tarde fui achado, ainda na forma de estrutura expelida do corpo de minha mãe, um óvulo fecundado, pelo seu Pedro, peão da fazenda que vivia à procura dessas iguarias para aumentar sua ração alimentar diária. Quando havia qualquer galinha chocando, seu Pedro separava alguns ovos e os colocava para serem chocados. O produto dessa ação lhe rendia novos galináceos. Assim ele mantinha seu próprio plantel, o patrão até incentivava essa ação.
Foi assim que fui parar sob as asas da pintadinha, galinha de estimação de seu Pedro, a única escolhida para a tarefa de reprodução, sempre bem cuidada, alimentada e protegida. Ela era o xodó do peão, jamais seria levada à panela; só quando estivesse bastante velha e não servisse mais para servir de chocadeira. Ao pensar nessa possibilidade, seu Pedro sempre deixava derramar algumas lágrimas pela face, já corroída pelo tempo e pelo clima tropical da Microrregião do Alto Parnaíba Piauiense.
Ao nascer, depois de passar vinte e um dias sob as asas de pintadinha, vi pela primeira vez a luz do sol. Percebi também a dificuldade que teria durante toda a minha vida. Uma anomalia congênita, hoje eu sei, causada possivelmente por deficiência nutricional materna, em consequência da ausência de biotina, ácido pantotênico, vitamina B2 (riboflavina), vitamina D, B1 (tiamina) na sua alimentação, me trouxe ao mundo com uma perna atrofiada, um ser com necessidades especiais. Como não podia usar muletas, como os humanos, eu teria que aprender a andar pulando em uma perna só.
Vocês não imaginam a dificuldade que enfrentei. Durante o primeiro passeio com minha mãe de aluguel, e meus irmãos postiços, por não poder acompanhá-los de perto, me perdi deles. Como eram muitos irmãos dessa ninhada, pintadinha não tinha tempo para olhar e cuidar de todos. Fui ficando para trás, pouco a pouco os sons emitidos pelos meus irmãos deixavam de ser referência para mim. Eles também não me ouviam, eram muitos os piados emitidos ao mesmo tempo, e isso, por certo, os confundia.
Desesperado, sentei ao chão e chorei bastante. Depois, mais calmo, tentei raciocinar, me localizar. Como era a primeira vez que me afastara da casa de seu Pedro, eu não tinha noção para aonde ir. O desespero foi aumentando, eu não conseguia ouvir qualquer som que me levasse a identificar a sua origem. Apenas o vento soprando e batendo nas folhas das plantinhas de soja. Já estava escurecendo, minha mãe de aluguel não daria falta de mim, não viria me socorrer. Cansado, dormi!
Cedo, acordei com o som das máquinas, era tempo de colheita naquela área. Quase fui atropelado por uma delas. Eu tinha que sair dali. Para que lado ir, eis a questão. Eu ainda não conhecia nada do mundo, nem do meu pequeno mundo, como então enfrentá-lo? Mas uma atitude eu tinha que tomar, mas qual?
Outra máquina passou bem próxima a mim. Notei que todas elas estavam indo na mesma direção, então resolvi acompanhá-las. Depois de certo trecho percorrido, percebi que elas estavam fazendo manobra para retornar por outra fileira do plantio de soja. Mesmo saltitando com dificuldade, conseguir me desviar da máquina que eu perseguia. Foi ai que notei uma clareira, deu para perceber que as máquinas já tinham executado o mesmo trabalho nela. Percebi também que eu estava ficando esperto, já raciocinava com mais clareza.
Aliviado, sai daquela plantação que não me permitia enxergar muito longe. Na área desnuda, foi possível ver a imensidão do espaço vazio à minha frente. Mas, agora, com a minha visão total, eu poderia planejar minhas ações, começava a dominar uma parte do meu mundo.
A primeira observação foi de que não havia ser igual a mim por perto, nem mesmo até onde minha visão alcançava. Seria uma área proibida para os galináceos? - perguntei a mim mesmo, aflito. E se fosse, para aonde ir? A resposta não estava dada, eu teria que procurá-la com perspicácia.
Estava com bastante fome, não comia há algum tempo, pois não sabia o que comer. Tentei alguns grãos de soja, pedrinhas, pequenas folhas, até que gostei de algumas. Como não tinha referência, eu teria que experimentar tudo. O medo era comer algo que me envenenasse. Mas deu certo, aprendi na marra e ainda estou vivo contando a minha história para vocês.
Por algum tempo passei muito frio, não havia as asas de minha mãe para proteger-me, e as penugens que me cobriam não eram suficientes para aquecer o meu corpo em dias de frio e chuva. Procurava sempre me esconder sob algum tronco caído ou mesmo embaixo de garranchos e folhas secas. Vivia mudando de terreno, bastava iniciar um novo plantio, para eu sair correndo, digo, saltitando o mais rápido que podia. Eu não queria ficar exposto, estava sempre fugindo, não de mim, mas daqueles que viviam naquele mundo sempre verde, rico e cheio de contradições.
Não tenho nome, nenhuma criança me batizou, nunca as tive próximo a mim, uma vaga lembrança eu tenho dos filhos do senhor Pedro, eram muitos. Eles corriam para pegar as galinhas mais velhas, as improdutivas. Nunca fiquei sabendo porque e para que.
Cresci na adversidade, jamais me aproximei de qualquer ser humano, muitos deles são maus. Eu os via sempre matando passarinhos, patos selvagens, tatus, macacos, lagartos e outros animais de pequeno porte. Alguns até colocavam armadilhas para atraí-los. Eu tinha todo o cuidado para não ser apanhado, até que um dia, por distração, fui cair nas mãos de Damião, um peão forte e rude, com muitos filhos para alimentar. Fui engaiolado e dele ouvi que eu seria bem cuidado e engordado, já estou aqui faz trinta dias. Sem liberdade, a coisa que eu mais prezo, o medo toma conta de mim. Comecei a lamentar não ter tido uma família, mãe, pai, irmãos, primos etc. Mesmo engordando, minhas forças estão se esvaindo. Fiquei sabendo que daqui a dois dias será Natal, não sei o que isso significa, não sei o que me espera. Conheci as crianças de Damião, elas nunca se aproximaram de mim, e isso é mau presságio.