481-FLATULÊNCIAS ESTUDANTIS - Memórias

O Ginásio Serrano era o melhor estabelecimento de ensino de uma vasta região do Sudoeste de Minas. Administrado por Irmãos Lassalistas, contava, na ocasião dos acontecimentos desta narrativa, com cerca de quatrocentos alunos, número bastante significativo para a época.

O ensino era, então, assim dividido: meninos e meninas começavam freqüentando o Grupo Escolar com sete anos completos, e saiam com onze, se não tomasse bomba em nenhuma série. Mais quatro anos de Ginásio e mais três de Clássico ou Científico, antes de poder ingressar na faculdade. O vestibular não era esta máquina de triturar neurônios e a faculdade era uma obrigação para os ricos ou um prêmio para os mais inteligentes. Não havia cotas nem se cogitava da cor do estudante.

Os membros da congregação de Irmãos, em número de seis, mantinham a disciplina com mãos de ferro e não poucos filhinhos de papai haviam sido suspensos e até mesmo expulsos por má conduta. Dentre os mestres, o mais circunspeto e sisudo era, naturalmente, o Irmão-Diretor. Jamais ria, aliás, sequer sorria. Respeitável e respeitado pelo cargo e pela idade, Irmão Maurício não precisava falar nada para se impor e para manifestar sua autoridade.

Havia o internato. Cerca de oitenta alunos das cidades vizinhas viviam como internos no Ginásio. Para eles, a disciplina se fazia sentir militarmente em todos os momentos de suas vidas. Hora para levantar, missa obrigatória diariamente, hora paras as refeições, para estudo na parte da tarde, tempo de recreação, hora do banho, e à noite, mais uma hora de estudo, até nove da noite, quando todos se preparavam para dormir. As dez, todo mundo na cama. As luzes apagadas, com um “Até Amanhã, durmam com Deus”, o Irmão Luiz colocava um ponto final em mais um dia.

Ou porque os alunos internos comiam demais ou porque a comida fosse na base de verduras e vegetais, ou talvez até pelos condimentos usados (diziam que um calmante era adicionado, a fim de manter os alunos calmos e tranqüilos) o fato é que eles, os internos, padeciam de flatulência explosiva e crônica. Muitos peidavam para sacanear os colegas da roda. Nem nas salas de aula havia continência na expedição dos gases malcheirosos. No dormitório parecia existir uma disputa para ver quem soltava pums mais sonoros e mais fedidos. Um horror!

A cada primeira segunda-feira do mês, todos os alunos eram conduzidos ao grande auditório do ginásio, a fim de receberem as cadernetas com as notas do mês anterior. Sessão de grande solenidade, onde os irmãos e os professores leigos (apenas dois) tomavam assento à grande mesa sobre o tablado elevado, em posição de honra e autoridade. Todos muito sisudos, principalmente o Diretor.

Depois que todos se assentavam e da sessão iniciada, o silêncio só era quebrado pela chamada dos alunos que conquistavam os primeiros lugares em cada classe. Não havia sequer palmas para os CDF.

Foi na sessão de setembro de ‘46(como me lembro!) que a coisa desandou. No meio da nominação, um burburinho começou lá no fundo. Alguns alunos se levantaram e deixaram suas cadeiras, mãos no nariz. Um grito se fez ouvir:

— O Capeta tá aqui no fundo!

Irmão Luiz, o Disciplinário Geral, levantou-se e ordenou:

— Ordem aí no fundo! Calem-se e sentem-se!

Inútil ordem. A debandada continuou e alguns alunos até pularam sobre cadeiras derrubadas.

Com passadas fortes, Irmão Luiz deixou a mesa de honra e se dirigiu ao local da confusão. De onde voltou rapidamente, com a mão veladamente sobre o nariz. Aproximou-se do Irmão Diretor e cochichou-lhe algo.

Antes que as emanações chegassem à mesa de honra, os alunos viram, pela primeira vez, a face do sisudo Irmão Maurício abrindo-se num sorriso de humor e compreensão.

Antônio Gobbo

Conto # 481 da série Milistórias

Belo Horizonte, 28 de fevereiro de 2008

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/11/2014
Reeditado em 01/11/2014
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